É bacharel em filosofia, publicou 'Pensando Bem...' (Editora Contexto) em 2016.
Escreve às terças, quartas, sextas, sábados e domingos.
A farinha do prefeito
Rosanna Perroti/Divulgação- ROU | ||
Biscoito feito com Farinata, que é a base do produto que será doado à Prefeitura de São Paulo |
SÃO PAULO - Pegue comida quase estragada, moa-a até compor um farelo em que todos os elementos se tornem irreconhecíveis e dê para os pobres. Com essa descrição, acho que até a mulher do prefeito João Doria ficaria contra o composto alimentar que o alcaide pretende distribuir a famílias em dificuldades econômicas em São Paulo. Resta saber se essa é mesmo a melhor descrição.
Humanos gostamos de pensar as questões que nos são apresentadas em termos abstratos e recorrendo a tipologias essencialistas, nas quais expressões como "estragado", "comida irreconhecível" e "para os pobres" tendem a se sobressair, praticamente definindo o juízo de valor que extrairemos. Muitas vezes, essa abordagem purista é válida, mas nem sempre.
Especialmente quando falamos de políticas públicas, é preciso considerar o contexto e as alternativas. Para que famílias a tal da farinha doriana se destinaria? Por quanto tempo seria utilizada? Como essa família está se alimentando hoje? A prefeitura tem estrutura e orçamento para adotar um programa que inclua alimentos "in natura"?
Sem ter pelo menos uma ideia das respostas a essas perguntas, parece-me precipitado condenar a farinha em termos absolutos como muitos vêm fazendo. É claro que Doria, que pode ser descrito como um mestre do improviso, obcecado pela Presidência e que se pauta apenas pelo marketing, não ajuda ao esconder os detalhes do programa.
Meu argumento é, no fundo, simples. Se a farinha do prefeito for segura e evitar que famílias recolham comida do lixo, pode ser uma boa alternativa. Se ela tiver um valor nutricional maior do que o dos alimentos que essa família consegue adquirir hoje por conta própria, idem.
E, antes que leitores de esquerda imprequem contra mim, lembro que esse é um conceito muito semelhante ao da redução de danos em drogas, que é aplaudido por nove entre dez progressistas.
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