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hélio schwartsman

 

11/10/2007 - 00h02

Suprema lambança

Que o troca-troca partidário chegou às raias do absurdo é uma verdade auto-evidente. Ocorriam até mesmo leilões nos quais parlamentares se ofereciam a novas legendas em permuta por regalias políticas. Acabar com essa distorção é uma necessidade. Ocorre que, numa democracia, mesmo a mais necessária das reformas precisa dar-se de acordo com certos ritos. E, no nosso sistema representativo, cabe ao Legislativo legislar. Assim, a decisão do Supremo Tribunal Federal de considerar que o mandato de parlamentares eleitos pelo sistema proporcional (deputados e vereadores) pertence ao partido mostra-se inadequada, porque de algum modo usurpa para o Judiciário funções que não lhe são próprias.

Não me entendam mal. Não sou um daqueles conservadores rematados que torcem o nariz à simples idéia de que juízes possam "legislate from the bench" (legislar dos tribunais). Ora, a jurisprudência é uma fonte mais do que legítima de transformação social. Só acho que interpretações extensivas do texto constitucional, que criam regras que não estavam explícitas, devem ser usadas com muita cautela. Isso é especialmente verdade no caso de Cartas detalhistas como a nossa. Uma coisa é inferir, a partir da enxuta e vetusta Constituição norte-americana, que as regras de proteção ao indivíduo garantem às mães o direito de dispor do próprio corpo e, por isso, de abortar gravidezes quando quiserem, e outra muito diferente é decretar, a partir de lacunas na Constituição brasileira de 1988, uma visão muito particular -- distorcida-- de fidelidade partidária. Que o legislador norte-americano não tenha mencionado a questão do aborto numa peça curta do século 18 é algo totalmente esperado. Já no caso brasileiro, se o constituinte de apenas 19 anos atrás não incluiu entre a profusão de regras eleitorais constantes da Carta a "propriedade" do mandato, é razoável imaginar que essa foi sua escolha. Pode até ser uma opção mal-intencionada, mas ainda assim uma opção.

A questão é delicada. Embora eu esteja convencido de que as freqüentes trocas de legenda em alguma medida corrompem a vontade da população expressa nas urnas, teria dúvida antes de estabelecer peremptoriamente que o mandato é do partido. Receio que, no Brasil, essa questão seja bem mais complexa, em muito lembrando as ambigüidades e sutilezas do comportamento onda-partícula da luz. Há cidadãos que votam em nomes, mal sabendo a que agremiação pertence seu candidato, e existem aqueles que votam segundo linhas partidárias e até ideológicas. Alguns definem seu voto a partir de uma mistura desses dois princípios. Determinar de modo inequívoco a quem pertence o mandato significa alijar de significado o voto de parte dos eleitores.

Qualquer definição necessariamente produz paradoxos. É absurdo, do ponto de vista da representação, cassar o mandato de um deputado como Clodovil Hernandes por mudança de legenda. Não há muita dúvida de que a maioria de seus eleitores votou no candidato como "pessoa física" e não como representante partidário. Para sermos conseqüentes com a noção de vontade popular, faria muito mais sentido que Clodovil levasse consigo para a nova agremiação o "excesso" de votos que sua candidatura engendrou. De modo análogo, existem postulantes pouco expressivos, que só se elegem graças à máquina partidária e às "sobras" de sufrágios dados a outros candidatos. É o caso dos cinco ou seis virtuais desconhecidos que, com poucas centenas de votos próprios, sagraram-se deputados na legislatura passada na esteira da votação recorde dada ao já falecido Enéas Carneiro. Os que acabaram se desligando da estrela do partido sem dúvida alguma traíram a vontade do eleitor, e mereceriam ser cassados.

Até acho que a decisão do Supremo terá o efeito salutar de inibir um pouco os leilões de deputados, mas temo que acabe por produzir uma lambança ainda maior do que a que pretende eliminar. Em primeiro lugar, embaralha-se a célebre repartição dos Poderes cujos fundamentos teóricos foram lançados por Montesquieu no século 18: cabe ao Legislativo e não ao Judiciário promover a reforma política. No Brasil, é verdade, nunca demos mesmo muita atenção a teorias. Só que a judicialização das eleições, esta sim deverá nos dar muito trabalho. Pelo que o STF estabeleceu, antes de ter seus mandatos cassados, parlamentares trânsfugas terão direito a um julgamento com amplo direito de defesa. Isso significa que as cortes eleitorais terão de debruçar-se sobre paradoxos como os que esbocei acima, além de ter de decidir se não foi a legenda que mudou de ideário e se o partido perseguia ou não o deputado --duas hipóteses legítimas de troca de agremiação segundo o TSE. Mais importante do que conseguir eleitores, um parlamentar vai precisar é de bons advogados. Aliás, nessa linha sugiro que o PSOL seja considerado legítimo sucessor de todos os votos atribuídos ao PT. Está mais do que claro, afinal, que foi a legenda comandada por Lula que traiu o sufrágio depositado pelo eleitor em 2002.

A resultante dessa reforma dos magistrados será o fortalecimento das burocracias partidárias, que, transformadas em detentoras do mandato, exercerão muito maior poder sobre seus parlamentares. Os que opuserem resistência poderão ser ameaçados com expulsão. Em tese, até sairiam vitoriosos num possível julgamento --seria indubitavelmente um caso de perseguição--, mas, como quem tem juízo evita ações na Justiça, parlamentares se tornarão mais dóceis aos caciques e, portanto, menos autônomos. Não gosto muito disso.

E, já que o assunto é reforma política, pergunto-me se a Carta de 88 está correta ao dar aos partidos políticos a importância que deu. Não há dúvida de que essas agremiações são uma forma ainda efetiva de intermediação da representação política, mas vê-las como instâncias exclusivas de militância da sociedade me parece uma idéia muito datada. Podia-se pensar assim no século 19 e início do 20, mas as coisas mudaram. Multiplicaram-se os espaços através dos quais setores se organizam e atuam politicamente. ONGs, lobbies, sindicatos, fundações e a própria internet são exemplos disso. Por que não acabar com o monopólio partidário e admitir candidaturas avulsas, por exemplo. Nesse caso, poderíamos com toda propriedade exigir que candidatos eleitos através de agremiações permanecessem na legenda sob pena de perda do mandato. Já fenômenos como Enéas e Clodovil poderiam apresentar-se como o que realmente são: blocos do eu sozinho. Não creio que isso melhoraria nossa representação política, mas pelo menos a tornaria mais realista.

Talvez eu seja minoritário, mas não vejo a reforma política como solução no atacado para nossos apuros institucionais. Costumo brincar que ela é muito boa para trocarmos problemas antigos por novos. É até divertido, mas pouco efetivo. Isso não me impede, é claro, de apoiar meia dúzia de medidas que me parecem interessantes. Incluo aí o fim do voto obrigatório, a correta representação da população dos Estados na Câmara dos Deputados, e o fim da vinculação partidária obrigatória. Nenhuma vai, isoladamente ou em conjunto, resolver nossas dificuldades, mas elas têm o mérito de traduzir melhor o contrato social que rege a sociedade. É de um eleitor tão livre e soberano quanto possível que emana o poder político.

Errei - Na coluna "A crítica da crítica" (27/9), deixei de checar no original uma informação e cometi uma injustiça. O livro didático "Nova História Crítica", que critiquei, não afirma que no socialismo "as decisões econômicas são tomadas democraticamente pelo povo trabalhador, visando ao bem-estar social". Tal definição diz respeito ao ideal marxista, jamais atingido em nenhuma experiência histórica, como esclarece quadro publicado à pág. 67 da obra. O episódio me ensina a checar mais e confiar menos em determinadas fontes, mas não me leva a mudar minha impressão geral sobre o "Nova História Crítica". Embora não seja um texto tão maluco como alguns o pintaram --há até passagens interessantes--, incorre em graves impropriedades historiográficas ao omitir e minimizar --e com claro viés ideológico-- alguns dos piores morticínios do século 20.

hélio schwartsman

Hélio Schwartsman é bacharel em filosofia, publicou 'Aquilae Titicans - O Segredo de Avicena - Uma Aventura no Afeganistão' em 2001. Escreve de terça a domingo.

 

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