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hélio schwartsman

 

21/07/2005 - 00h00

A santa aliança

Em recente artigo ao jornal "The New York Times", um influente prelado católico, o arcebispo de Viena, Cristoph cardeal Schönborn, lançou um inesperado ataque à teoria darwinista da evolução das espécies. O dignitário, que é visto como teologicamente próximo ao papa Bento 16, afirmou que a noção darwiniana de ancestralidade comum entre os seres vivos pode estar de acordo com a doutrina católica, mas que os conceitos de mutações aleatórias e seleção natural sem direção ou finalidade certamente não estão. Schönborn também aproveitou para qualificar declarações do papa João Paulo 2º simpáticas ao darwinismo como "vagas e desimportantes".

Classifiquei as invectivas do prelado à teoria darwinista como inesperadas porque os católicos, diferentemente de muitas das denominações protestantes, nunca foram fundamentalistas, no sentido de advogar pela interpretação literal dos textos bíblicos. Pelo contrário, é justamente para a correta hermenêutica das Escrituras que a Igreja existe. O que diferencia o papa do comum dos mortais é que, animado pelo Espírito Santo, o sumo pontífice é infalível na compreensão das disposições divinas.

A situação do cientista católico é muito mais confortável do que a de seus homólogos fundamentalistas. Ele não está obrigado a achar que o mundo tem 5.765 anos nem a considerar que a mulher surgiu de uma costela adâmica. A não-literalidade deixa espaço para interpretações alegóricas, parábolas, metáforas, para a abstração, enfim...

É claro, porém, que essa "liberdade" é relativa e deve ocorrer sob estreita supervisão da autoridade religiosa. Se assim não fosse, Giordano Bruno nunca teria ido para a fogueira nem Galileu teria sido forçado a abjurar suas crenças heliocêntricas. (Quem quiser liberdade sem aspas deve experimentar o agnosticismo, no qual Deus é apenas uma hipótese --e ainda por cima fora do campo da experiência possível, isto é, uma conjectura cuja existência real nem devemos perder nosso tempo tentando provar ou desmentir).

É bem verdade que os fundamentalistas também levam algumas vantagens sobre os católicos. Pelos textos bíblicos, eles estão autorizados a casar-se com várias mulheres ao mesmo tempo e ainda arrumar alguns escravos para fazer o trabalho doméstico. Não é lá muito politicamente correto, mas não deixa de ser um conforto.

Quanto às idéias defendidas por Schönborn, elas me parecem consistentes. Creio que seja mesmo difícil para o bom católico sustentar que não há finalidade na criação. Não é certamente impossível conciliar o neodarwinismo com uma noção de Deus, mas creio que essa atitude nos empurraria para algo mais perto do "design inteligente" ou do deísmo, para um Deus demiúrgico que criou o mundo e depois se retirou, sem mais interferir em sua obra. Esse, evidentemente, não é o Deus católico.

É claro que com um pouco de boa vontade hermenêutica conseguiríamos conciliar até israelenses e palestinos. Dando-se a alguns circunlóquios lógicos, não é de modo algum impossível proclamar a um só tempo a fé na Bíblia e na "Origem das Espécies". Só que o resultado soaria um pouco forçado. Ou bem há um Deus atuante e com um propósito, ou bem somos o produto da inopinada mistura de carbono com mais dois ou três elementos químicos baratos. Fico com a segunda hipótese, mas longe de mim proibir quem quer que seja de preferir a primeira.

E já que o meu propósito é o de conservação das liberdades, devemos também fazer uma leitura política do texto de Schönborn. Não se pode descartar a possibilidade de que a publicação seja o prelúdio para estreitar ainda mais a santa aliança entre católicos e pentecostais nos EUA. Com efeito, os dois grupos já andam de braços dados no combate ao aborto e à pesquisa com células-tronco embrionárias humanas. Talvez tenham planos de juntar-se também para lutar contra o ensino de ciência.

Se eu fosse padre e quisesse manter o "statu quo", seria justamente por aí que iniciaria minha batalha. Segundo o instituto Gallup, 90% dos norte-americanos acreditam que Deus desempenhou algum papel na criação (45% acham que tudo se passou exatamente como narrado no Gênesis, de acordo com outras pesquisas). Entre os membros da Academia Nacional de Ciências dos EUA, são só 10% os que crêem em Deus. Assim, não é preciso ser um gênio da estatística para perceber que ensinar ciência pode fazer mal para a religião. É mais democrático, porém, deixar que os jovens aprendam tanto a religião (em casa e nos templos) como a ciência (nas escolas) e permitir-lhes que decidam o que querem ser sozinhos.

Se a sanha antidarwinista estivesse restrita aos EUA, eu nem me preocuparia muito. Esse fantástico país sempre se virou muito bem no campo científico mesmo sendo a pátria de alguns dos mais loucos fanatismos. Receio, porém, que as teses mais conservadoras do "Bible belt" estejam se globalizando. Até mesmo na liberal Holanda, já vimos a ministra da Educação defendendo a teoria do "design inteligente", como forma de integrar a comunidade islâmica à sociedade holandesa. Os ecos também chegam ao Brasil. O governo do Estado do Rio de Janeiro, por exemplo, vai introduzindo o ensino do criacionismo nas escolas públicas fluminenses. É um crime que os Garotinhos cometem contra a garotada.

As pessoas são livres para acreditar no que bem entenderem, mas, se quisermos preservar uma certa uniformidade na linguagem técnica, precisamos rejeitar a noção de que os partidários do "design inteligente" estejam fazendo ciência. Palavras mais adequadas para descrever sua atividade são "proselitismo" e "confusão". É claro que, no sentido forte, o darwinismo é apenas uma teoria. Cabe, porém, lembrar que a gravitação universal também é apenas uma teoria, mas nem por isso os livros de física e os aviões vêm com um alerta afirmando que as coisas podem não se dar como a "teoria" afirma. Todas as explicações científicas são necessariamente apenas teoria, uma vez que a ciência, ao contrário das religiões, não pretende apresentar verdades reveladas. Todo juízo científico é provisório, podendo ser melhorado à medida que acumulamos mais saber ou até inteiramente reformulado, se a teoria que o sustenta vir a apresentar problemas.

É um erro metodológico tentar introduzir sub-repticiamente Deus nos livros de ciência, como procuram fazer os defensores do "design inteligente". Fere-se aqui a noção básica de que, em ciência, precisamos nos valer da maior economia possível nas explicações. Não podemos, à primeira dificuldade da teoria, nos sair com um "Deus ex machina" que solucione todos os nossos problemas. Quer dizer, até podemos fazer isso, mas aí estamos no campo da metafísica e não no da ciência. Por mim, tudo bem, pois aprecio ambas. Só não acho correto embolar o meio de campo e chamar as coisas pelos nomes que elas não têm.

Quanto ao bom cardeal Schnborn, creio que ele está certo. Católicos que queiram permanecer como tal precisam pensar duas vezes antes de aceitar a noção de evolução sem finalidade. Mas espero que o bom prelado não pretenda enfiar a finalidade goela abaixo de todos. Numa democracia, o Estado e a escola pública devem ser laicos, assim como a legislação deve ser exclusivamente positiva.

Para que não me considerem um anticlerical feroz, informo que estou prestes a fundar uma religião, a Igreja Heliocêntrica do Sagrado EvangÉlio. Nela defenderei o que venho defendendo neste espaço já há cinco anos, mas conquistarei a tal da imunidade tributária (Constituição Federal, art. 150, VI, b) e ainda livrarei meus filhos --os ministros Ian e David-- do serviço militar obrigatório (Idem, art. 143, pár. 2º). É um bom negócio, que recomendo a todos. No meu caso não vai dar para coletar malas de dinheiro, mas já fico feliz livrando-me dos impostos --e dentro da lei, porque não sou nenhuma Daslu.

PS: Saio de férias por alguns dias. Retomo a coluna no dia 11 de agosto.

hélio schwartsman

Hélio Schwartsman é bacharel em filosofia, publicou 'Aquilae Titicans - O Segredo de Avicena - Uma Aventura no Afeganistão' em 2001. Escreve de terça a domingo.

 

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