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hélio schwartsman

 

08/09/2005 - 00h00

O álibi de Deus

O saldo de destruição deixado pelo furacão Katrina nos transporta para uma Bangladesh ou qualquer outro ponto miserável do Terceiro Mundo. Custa-nos crer que tamanha devastação e tantas mortes, as quais deverão chegar à casa dos vários milhares, tenham ocorrido nos EUA, maior e mais rica potência do planeta. Reforça a idéia de desastre típico da periferia o tom de pele medianamente mais escuro dos flagelados. Como em tantas outras situações desse gênero, operou aqui uma perversa seleção econômica: negros e hispânicos, sem recursos para deixar as áreas ameaçadas, se converteram nas vítimas preferenciais.

Não se trata, é claro, de responsabilizar pessoalmente o presidente George W. Bush pela catástrofe, como muitos vêm fazendo dentro e fora dos EUA. A administração federal certamente cometeu erros, mas o mesmo se pode dizer das autoridades municipais e estaduais. Além disso, não devemos subestimar a força dos ventos. O Katrina, pouco antes de atingir a costa norte-americana, havia sido catalogado como um furacão de categoria 5 na escala de Saffir-Simpson. Isso significa que a velocidade dos ventos superou os 249 km/h. Trata-se de um ciclone capaz de produzir grande devastação por onde quer que passe. A assolação, contudo, como acontece em grande parte dos desastres, parece ter sido magnificada por uma série de falhas humanas.

Parece inadmissível, por exemplo, que os diques que mantinham seca a cidade de Nova Orleans --que fica abaixo do nível do mar-- não tenham resistido à força do vendaval. Foram vários anos de descaso para com uma edificação fundamental para a segurança da cidade. É também incômodo para o país mais rico do mundo não ter conseguido implementar a evacuação obrigatória determinada pela prefeitura, que, entretanto, deu a ordem com apenas 24 horas de antecedência e não disponibilizou os meios para a retirada. Vale lembrar que furacões, diferentemente de terremotos, tsunamis e tornados, podem ser previstos --e foram-- com vários dias de antecedência. Embora a rota exata do ciclone não possa ser determinada com grande antecipação, o evento climático foi cuidadosamente acompanhado por meteorologistas que deram todos os alarmes possíveis.

Os erros continuaram após a passagem da tormenta. As autoridades só reagiram muito lentamente. Custaram a providenciar socorro e víveres para a população atingida. Como conseqüência, houve uma importante ruptura na segurança. Nova Orleans principalmente foi tomada por saqueadores e gangues de rua. Equipes de resgate foram rechaçadas à bala em alguns pontos da cidade. Para além das já penosas condições provocadas pelo furacão, as vítimas tiveram de conviver com tiroteios, estupros, suicídios. Felizmente, nos últimos dias, o panorama começou a mudar. O socorro chegou, a população foi medicada e transferida para outras áreas do país, e a segurança foi restabelecida. Começaram os trabalhos de recuperação dos cadáveres e das cidades.

Não simpatizo muito com George W. Bush, mas me parece tolice torná-lo culpado pelos insucessos. Não foi ele quem inventou os furacões, a pobreza anos EUA --pode tê-la apenas agravado um bocadinho-- nem é o responsável direto pelas falhas dos órgãos e agências encarregadas de lidar com emergências. Foi um pouco lento ao reagir politicamente ao caso, mas, assim que se deu conta do tamanho da encrenca, tratou de recuperar o tempo perdido.

O que me interessa nessa como em outras catástrofes de grandes proporções --a exemplo do que fiz nas colunas "Terra sem fim" e "A terra e o mal" -- são as perguntas mais simples: por quê, para quê? Como o leitor já deve ter percebido, estou levando a discussão para o campo da ética e, por conseguinte, daquilo que convencionamos chamar de bem e mal --e Deus.

É a própria Bíblia quem nos ensina a pensar cataclismos e intempéries como punições divinas. Foi assim com o Grande Dilúvio e com as cidades depravadas de Sodoma e Gomorra, para mencionar apenas os casos mais ilustres. Em ambos, uma porção da humanidade corrompida recebeu a justa pena por seus pecados.

Se aplicássemos o mesmo raciocínio às calamidades modernas, teríamos de concluir que todas as vítimas de Nova Orleans, incluídos os bebês que tenham perecido, são os responsáveis por sua própria danação. De modo análogo, toda a população que habitava a região costeira do sudeste da Ásia e que foi dizimada pelos tsunamis de dezembro passado era culpada de crimes muito graves. O corolário que se impõe é o de que pecadores se agrupam segundo critérios geográficos e sociais, pois são esses os recortes que mais comumente percebemos nos desastres naturais. Estamos a um passo de tornar Deus um chauvinista classista.

É muito mais razoável, portanto, abrir espaço para o acaso, o fortuito. Hecatombes deixariam de ser obra de um Deus que interfere diretamente nos destinos de cada um de nós para tornarem-se o resultado de forças físicas em combinação com as precauções humanas --ou a ausência delas. O problema dessa interpretação é que ela tira espaço para o Deus vivo e atuante pregado por boa parte das religiões. Não seria difícil conciliar o acaso com o deísmo, com uma entidade meramente demiúrgica, mas como admitir um Criador benevolente, onisciente e onipotente capaz de permitir que, num único evento, tantas vidas sejam ceifadas? Pior, como aceitar que um ser essencialmente bom permita tal entrecruzamento de destinos, que criancinhas supostamente sem pecados sejam sacrificadas devido a crimes cometidos por seus pais ou vizinhos? Nesse caso, haveria, para Deus, uma hierarquia das almas, sendo umas mais importantes que outras. Que barbaridade um asiático pode ter perpetrado para justificar que sua punição exija o dispêndio de mais 149.999 vidas?

Não tenho, evidentemente, a pretensão de resolver o deliciosamente metafísico debate sobre o mal na terra, que tanta tinta já verteu de filósofos e teólogos. Meu propósito, mais modesto, é defender pragmaticamente a noção de fortuito, que, por alguma razão, provoca a repulsa de religiosos. Com efeito, o que mais parece assustar aqueles que combatem as descrições darwinistas da evolução das espécies é a suspeita de que a vida, sendo fruto de encontros moleculares e mutações aleatórias, possa não passar por Deus, mas resultar do encontro inopinado de uma molécula de carbono com dois ou três elementos químicos baratos.

A idéia de gratuidade na vida não me incomoda. Parece-me menos artificial do que o conceito de alguém inteligente e poderoso que um dia teve o lampejo de criar o Universo e tudo o que ele contém, aí incluídos eu, você, leitor, George W. Bush e o furacão Katrina.

É claro que tudo isso é matéria altamente especulativa e pouco afeita a interpretações definitivas. Cada um de nós é felizmente livre para defender a tese que bem desejar. Encerro minha argumentação em favor do despropósito do mundo lembrando que, pelo menos para o problema específico das catástrofes naturais, o acaso parece ser o melhor álibi para Deus.

hélio schwartsman

Hélio Schwartsman é bacharel em filosofia, publicou 'Aquilae Titicans - O Segredo de Avicena - Uma Aventura no Afeganistão' em 2001. Escreve de terça a domingo.

 

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