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hélio schwartsman

 

16/03/2006 - 00h00

Oportunidades perdidas

A absolvição dos deputados Roberto Brant (PFL-MG) e Professor Luizinho (PT-SP), sacadores confessos do valerioduto --o esquema de remessa ilegal de recursos urdido pelo ex-tesoureiro do PT Delúbio Soares e pelo publicitário Marcos Valério--, no plenário da Câmara na semana passada confirma as piores expectativas. É até possível que algum deputado mais "azarado" ainda venha a perder o mandato, mas o teor do ânimo punitivo do Legislativo já foi definido: uma das mais graves crises da história recente do Brasil terminará num grande acordo inconfessavelmente corporativo que promove uma espécie de legalização "de facto" do caixa dois entre políticos. Com efeito, o que os parlamentares estão afirmando ao inocentar colegas que admitiram ter-se utilizado de fundos "não-contabilizados" é que não há nenhum problema em fazê-lo.

A fim de ser coerentes, os congressistas deveriam abolir a norma que criminaliza o recebimento de dinheiro não-declarado. A fim de ser republicanos, deveriam estender seus benefícios a todos os demais cidadãos. Ninguém mais estaria obrigado a pagar impostos e estaria fundada a República Anômica do Brasil. Para deleite dos liberais, a carga tributária e a presença do Estado na economia encolheriam rapidamente. Para deleite dos anarquistas, o próprio Estado também desapareceria.

Apesar de repugnante, o desfecho que se vai desenhando não era absolutamente imprevisível. Na coluna "Esperando a crise passar", de 27/10/2005, eu escrevi: "Para o bem e para o mal, nossa capacidade de indignação é limitada. Assim como não conseguimos sustentar para sempre uma paixão, tampouco logramos passar toda a vida revoltados com determinadas pessoas ou práticas. É por essas e outras que a crise política parece estar com os dias contados, e o governo já vai comemorando o 'fim' de suas agruras". E, se já havia sinais detectáveis até por mim, que não entendo nada de política, em outubro, a situação ficou escancarada em dezembro, quando o plenário da Câmara absolveu o deputado Romeu Queiroz (PTB-MG), que amealhou a bagatela de R$ 452 mil em recursos valerianos.

Queiroz, Brant, Luizinho e os demais mensalistas costumam defender-se afirmando que não utilizaram o dinheiro em benefício próprio, mas pretendiam empregá-lo em "missões partidárias", como campanhas --suas ou de correligionários. Muito me admiraria se algum dos envolvidos declarasse ter comprado um iate ou uma TV de cristal líquido com a grana. A questão não é em quanto o deputado pôs as mãos nem o que fez com a soma, mas sim o fato de ter participado de prática vedada por lei.

A alegação de alguns dos réus de que não sabiam da origem ilegal dos recursos é ainda mais patética. Principalmente um homem público deve desconfiar de operações financeiras feitas às sombras, muitas vezes em dinheiro vivo e sem a assinatura de recibos. "Pecunia olet" (o dinheiro tem cheiro), se é lícito desmentir o dito do grande Vespasiano. Um deputado que se deixa apanhar em tal situação, mesmo que seja honesto, deve ser cassado sob a acusação de ingenuidade maculosa.

Voltando às absolvições, a melhor explicação para elas é que, na intimidade do voto secreto, a maioria dos parlamentares deixou-se levar pelo "esprit de corps". Como bons cristãos, foram capazes de colocar-se no lugar do deputado representado e, superando até mesmo as barreiras partidárias, concluíram pela inocência. Nesse contexto, não há como deixar de suspeitar que é de centenas e não apenas de umas poucas dezenas o total de deputados que se vale dos tais recursos "não-contabilizados". Nunca foi tão verdadeira a frase do velho Luiz Inácio Lula da Silva que estipulava em pelo menos 300 o número de "picaretas" no Congresso Nacional. Resta a lamentar que, eleito presidente, Lula tenha se debandado para o lado mais obscuro da política.

O epílogo que se esboça para a crise nos ensina muito a respeito de nossas próprias expectativas e como, com a passagem do tempo, nos acostumamos a ver nosso nível de exigência rebaixar-se. De fato, nos primeiros textos que escrevi sobre o chamado "mensalão" --"Impeachment já" e "Pedagogia legal" -- eu defendia o afastamento de Lula, embora consciente de que ele dificilmente viria. Depois, acreditando que a maior parte dos deputados da lista de cassáveis de fato o seria, passei a reclamar --"Já é pizza" e "A queda" -- a ampliação das investigações e a inclusão de "esquecimentos", isto é, dos nomes de outros políticos metidos em estripulias éticas, mas que inexplicavelmente foram deixados de fora das listas de cassáveis. Falo de gente como o senador Eduardo Azeredo (PSDB-MG), o ex-deputado Ronivon Santiago (PP-AC) e o deputado Gonzaga Patriota (PSB-PE), entre outros.

Ao que tudo indica agora, o "preço" da crise ficará mesmo é nas cabeças de Roberto Jefferson (PTB-RJ), que deflagrou toda a confusão ao denunciar o esquema do "mensalão", e do ex-ministro José Dirceu (PT-SP), que acabou virando uma espécie de bode expiatório oferecido no lugar do presidente Lula. Houve, é claro, alguns que renunciaram para escapar à punição --e, pelo andar da carruagem, já devem estar profundamente arrependidos de tê-lo feito-- e outros que foram expulsos de seus cargos na burocracia petista. É muito pouco. Trata-se, afinal, de uma crise que deixou claro que o financiamento ilegal de campanha e esquemas de corrupção que o alimentam são fenômenos muito mais amplos e generalizados do que se supunha.

É claro que os principais responsáveis pela aviltante pizza que se vai assando no Congresso são os deputados que votaram pelas absolvições. Mas não são os únicos. Apesar de todas as suas inúmeras e muitas imperfeições, o Parlamento reflete em algum grau o sentimento da população. Se fosse grande a pressão pela cassação, dificilmente os parlamentares se teriam arriscado a contrariar a "vox populi". O problema é que a indignação popular com o escândalo foi perdendo terreno. A forte rejeição que as pesquisas chegaram a registrar em relação ao governo Lula no auge do escândalo reverteu-se e as chances de reeleição parecem mesmo muito boas. Se os eleitores "perdoaram" o governo, não parecia haver muita razão para que os deputados não fizessem o mesmo com seus pares.

Pessoalmente, sou um entusiasta da tolerância, sentimento que considero a mais importante virtude social. É ela que nos permite construir sociedades um pouco mais harmônicas. Receio, porém, que o brasileiro a cultive em níveis excessivos, que beiram a apatia. Desconfio de que muitas das mazelas contra as quais nos debatemos há séculos por aqui teriam sido superadas se soubéssemos reagir com mais firmeza contra determinados comportamentos socialmente perversos. A pizza sabor "mensalão" é mais uma dessas ocasiões. Aparentemente, nós brasileiros nunca perdemos a oportunidade de perder a oportunidade de mudar as coisas.

hélio schwartsman

Hélio Schwartsman é bacharel em filosofia, publicou 'Aquilae Titicans - O Segredo de Avicena - Uma Aventura no Afeganistão' em 2001. Escreve de terça a domingo.

 

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