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hélio schwartsman

 

04/01/2007 - 00h00

A morte de um tirano

Saddam Hussein Abd al Majid al Tikriti foi executado às 6h00 (hora de Bagdá) do dia 30 de dezembro de 2006. Foi feita justiça?

A pergunta é capciosa. Não há dúvida de que Saddam foi um dos mais selvagens ditadores que o século 20, tão pródigo em tiranias, produziu. A conceituada ONG Human Rights Watch atribui a seu governo a responsabilidade pelo assassinato de 290 mil iraquianos. Esse número chega facilmente à casa dos milhões se computarmos também as vítimas dos dois grandes conflitos internacionais que ele iniciou, a Guerra Irã-Iraque (1980-1988; 1,7 milhão de mortos) e a Guerra do Golfo (1990-91; 100 mil mortos).

Saddam não hesitava em assassinar crianças nem em utilizar armas químicas contra populações civis. O massacre de Halabja por ele ordenado em 16 de março de 1988, no qual uma mistura de gás mostarda com agentes nervosos foi usada contra os moradores deste vilarejo curdo (5 mil mortos; 10 mil seqüelados), entrou para a galeria dos grandes crimes da história.

Sua crueldade, metodicamente calculada, não conhecia limites. É célebre o episódio de 1982 no qual, durante a guerra com o Irã, o ditador promoveu uma reunião de gabinete e pediu a seus ministros conselhos para conter a contra-ofensiva persa. Instou-os a falar livremente. O então titular da Saúde, o cândido Riiadh Ibrahim, sugeriu que Saddam se afastasse temporariamente da Presidência para negociar a paz com Teerã. O corpo de Ibrahim foi enviado em postas para a viúva no dia seguinte.

(É claro que o mundo não é um lugar tão simples como gostaríamos. Também é possível rememorar algumas realizações civilizatórias do ex-ditador, como a universalização do ensino público gratuito, a erradicação do analfabetismo, a criação de um sistema público de saúde, a concessão de direitos iguais para as mulheres, sua oposição ao conservadorismo religioso, notadamente a abolição da "sharia" --a lei islâmica-- nos tribunais iraquianos. O dualismo bem-mal funciona melhor em nossas cabeças do que na realidade concreta).

Bem feitas as contas, porém, não há muita dúvida de que o planeta sem Saddam Hussein é um lugar um pouco menos ruim. Ainda assim, é o caso de perguntar se o seu enforcamento foi justo. Para tentar responder a essa questão, precisamos, antes de mais nada, de algo que se aproxime de uma definição de justiça.

"Grosso modo", existem duas concepções de Direito. A primeira e mais antiga é conhecida como lei de talião. É o famoso "olho por olho, dente por dente" do Antigo Testamento. Tecnicamente, leva o nome de justiça retributiva. Não difere muito da vingança. Aplica-se a pena porque o réu a "merece". Essa noção de merecimento, é claro, só faz sentido quando dispomos de um Deus ou alguma outra entidade metafísica que sustente uma idéia de Justiça perigosamente platônica.

O conceito de justiça retributiva começou a ser questionado no século 18, especialmente por Cesare Beccaria (1738-1794) e Jeremy Bentham (1748-1832). A partir do século 19 foi ganhando força a noção utilitarista de que a pena tem como objetivo, não a punição pela punição, mas a manutenção da ordem pública. O criminoso deve sofrer uma sanção para desencorajar outras pessoas a imitá-lo. Daí a necessidade de julgamentos públicos e de algum modo ritualizados --o famoso "due process of law" (devido processo legal). A pena já não precisa ser tão "cruel" como a ofensa que pretende coibir.

Curiosamente, dois dos maiores filósofos iluministas alemães, Kant e Hegel --que fazem parte de qualquer seleção dos principais pensadores de todos os tempos--, não se deixaram seduzir pela onda humanista. Kant achava que um estuprador deveria ser castrado mesmo, e Hegel, embora tenha contribuído para a distinção entre justiça e vingança, seguia vendo na punição em si mesma um valor. Para Hegel, o crime é a negação da ordem moral. A sanção, como negação dessa negação, reafirma o Direito. Sutilezas da dialética.

Hoje é difícil sustentar, no mundo civilizado, a concepção puramente retributiva. Por razões que não cabe aqui comentar, os sistemas legais do Ocidente foram deixando de fazer referência a Deus (ou, alternativamente, à dialética) e procuraram fundar-se como positivos. A notável exceção são os EUA, o único país industrializado que de fato aplica a sanção máxima.

Vale observar que a racionalidade da objeção à pena capital não se limita a sua crueldade. Afirmar que nem o pior criminoso deve ser executado equivale a reintroduzir a noção de merecimento que só pára em pé com muletas metafísicas. A lógica positiva para opor-se à pena de morte está no fato de que ela é inútil (sua introdução ou retirada não tem impacto significativo sobre as taxas de criminalidade), é irreversível nos casos de erro judicial e tende a encarecer os processos (imaginando-se que condenados ao cadafalso tenham as possibilidades recursais ampliadas, como ocorre nos EUA).

É verdade que uma noção puramente utilitarista também cria dificuldades teóricas. Quase todos achamos que Saddam Hussein, a exemplo de outros grandes genocidas, "merece" punição. Do ponto de vista utilitário, contudo, não ganhamos nada ao enforcá-lo ou mesmo ao prendê-lo, visto que, uma vez deposto, não teria meios materiais para voltar a cometer os crimes de que foi acusado. Até como exemplo sua execução tem alcance limitado. Nenhum candidato a ditador deixa de converter-se num tirano por temor ao castigo. De resto, na maioria dos casos históricos, déspotas foram recompensados com poder e riquezas.

E esse não é o único problema. Se levarmos a lógica utilitarista ao extremo, precisaremos considerar "válido" conter a ação de criminosos ameaçando seus familiares, por exemplo.

Gostemos ou não, o fato é que a biologia dotou cada um de nós --e também aos chimpanzés e bonobos-- de um senso de justiça que varia um pouco de indivíduo para indivíduo mas que mantêm um padrão mais ou menos fixo para a espécie. Um direito positivo utilitarista inteiramente divorciado desse "senso jurídico comum" tende a ser rejeitado pela população, num movimento que o levaria a fracassar também em seus propósitos preventivos.

Uma Justiça moderna, coerente e eficiente, precisa, portanto, calcar-se no utilitarismo, mas sem perder seu vínculo com a sensibilidade da população. Na verdade, decisões judiciais repetidas servem até para ajudar a modificar os sentimentos da sociedade. Um exemplo: apenas 60 anos atrás, não passaria pela cabeça de ninguém a idéia de que a pena para os principais carrascos nazistas pudesse ser outra que não a morte. Hoje, a esmagadora maioria da população da Europa rejeita com veemência a sanção capital. A própria ONU a aboliu. É assim que o Zeitgeist (espírito da época) evolui.

Voltando a Saddam, não há dúvida de que ele precisava ser severamente castigado. Sua execução, porém, particularmente nas condições em que ocorreu, parece ter sido um erro conjunto da administração de George W. Bush e do governo iraquiano.

Para começar, Saddam jamais poderia ter sido julgado por um tribunal iraquiano. Normalmente, a Justiça se materializa quando da cominação da pena pelo Estado ao cabo de um juízo. O fato de o castigo ser determinado por um poder neutro e alheio às partes impede que a imposição da sanção dê lugar a um novo ciclo de violência. Ora, no Iraque recém-saído da ditadura de Saddam, tal poder neutro e alheio simplesmente não existia, em especial no que diz respeito ao chefe deposto. A Human Rights Watch levantou uma série de graves vícios no processo. Assim, em vez de o julgamento de Saddam tornar-se uma oportunidade para os iraquianos fazerem as pazes com a própria história, converteu-se em mais um capítulo da interminável rixa entre sunitas e xiitas. Tal disposição ficou evidente nas ásperas palavras trocadas entre o ex-líder sunita e seus executores xiitas. Ao que tudo indica, a morte de Saddam, que muitos sunitas tomarão por mártir, vai alimentar ainda mais a violência sectária no país.

Tal situação era previsível. Bush, porém, cujos soldados capturaram Saddam, preferiu não entregar o ditador a um tribunal da ONU, onde haveria alguma chance de um julgamento justo. É lícito supor que processar o ex-ditador numa corte que não aplica pena de morte violaria a concepção retributiva de justiça do presidente norte-americano.

Seja como for, a essa altura, o apressado enforcamento de Saddam Hussein --que o "privou" de ser julgado por crimes ainda piores do que os que o condenaram-- é apenas mais um na série de erros que foi a invasão do Iraque. A intervenção, que deveria levar os iraquianos a uma era de paz, democracia e respeito aos direitos humanos, trouxe-lhes apenas morte, guerra civil e caos humanitário. Poucas vezes na história militar se viram fracassos tão retumbantes.

hélio schwartsman

Hélio Schwartsman é bacharel em filosofia, publicou 'Aquilae Titicans - O Segredo de Avicena - Uma Aventura no Afeganistão' em 2001. Escreve de terça a domingo.

 

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