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hélio schwartsman

 

29/08/2002 - 00h00

Censura pública

Se eu fosse maldoso, diria que o governo federal, depois de ter tentado restabelecer a censura na TV, quer agora retirar livros que considera impróprios de bibliotecas públicas. Bem, esse é um resumo enviesado mas não fictício de uma história que agora conto com com mais detalhes e sem adjetivos, para que o leitor possa tirar suas próprias conclusões.

O governo do Estado de São Paulo lançou, no ano passado, o programa Leia Mais, que distribui livros dos mais variados gêneros e autores para as bibliotecas de escolas estaduais do ensino médio. Exemplares de "A Mulher Mais Linda da Cidade e Outras Histórias", do escritor "beatnik" Charles Bukowski, foram enviados a 2.982 instituições. Um pai considerou a obra pornográfica, queixou-se ao Conselho Tutelar da Criança e do Adolescente da cidade de Guapiara, o processo subiu até o Conselho Nacional de Defesa da Criança e do Adolescente (Conanda, ligado ao governo federal), que agora vai interpelar o governo do Estado de São Paulo e poderá pedir aos conselhos tutelares municipais que requeiram a retirada de Bukowski das estantes das bibliotecas.

Admito que não li "A Mulher...", mas já tive oportunidade de examinar outros Bukowskis. Não se trata de um autor que costume surpreender. Sua prosa traz invariavelmente muito sexo, porres homéricos e, no meio, um pouco de literatura. Não está entre meus preferidos, mas seria injusto descartá-lo como desprovido de valor. Também me parece iníquo classificá-lo como primordialmente pornográfico, com o mesmo estatuto dos catecismos de Carlos Zéfiro, por exemplo. (E, a propósito, vale lembrar que a obra de Zéfiro vai aos poucos tornando-se "cult").

A discussão nos remete para as intermináveis tentativas de distinguir entre o erótico, que seria aceitável, e o pornográfico, que seria apenas degradante, não teria nenhuma função senão a de excitar pessoas com pouca imaginação. Eu receio, contudo, que essa divisão não exista. Ou melhor, até existe, mas é bem mais tênue do que muitos gostariam.

Fico com a definição de Alexandrian ("História da Literatura Erótica", Ed. Rocco), para quem o erótico nada mais é do que o "pornográfico revalorizado em função de uma idéia do amor ou da vida social". O erótico é, em bom português, a pornografia com grife, a Daslu do sexo.

Eu estranho um pouco que ainda procuremos pretextos elevados para aceitar um discurso direto sobre o sexo. Com Freud deveríamos ter nos libertado da necessidade vitoriana de encontrar desculpas para gostar da coisa e falar sobre ela. Mas desconfio de que, nesse terreno, a humanidade não caminha necessariamente rumo a uma maior tolerância, como já se pensou em meados do século 20.

O livro de Alexandrian é especialmente interessante porque mostra que a pornografia nem sempre foi condenada. Mesmo períodos históricos que costumamos tomar como obscurantistas podiam exibir uma inopinada tolerância para com coisas do sexo. Corro o risco de me repetir em relação a uma coluna publicada no TV Folha em 08/04/2001, mas vale a pena ver mais de perto algumas pérolas históricas do erotismo/pornografia.

Alexandrian conta, por exemplo, que os primeiros poetas cristãos de Bizâncio, entre uma exaltação e outra a Cristo, gostavam de organizar concursos de nádegas. Divertiam-se cunhando palavras elegantes como "rhodopugon" (de bundinha rósea, em grego) para referir-se ao traseiro de uma bela jovem.

A Idade Média, normalmente tida como a "idade das trevas", na qual a Igreja Católica com sua rígida moral controlava tudo e a todos, também pode apresentar surpresas. Foram os poetas medievais que criaram e popularizaram expressões como "cavalgar sem sela", "enfiar um pedaço de chouriço entre dois presuntos", "triturar a noz", "introduzir o lagostim no capitólio". Não creio que eu precise traduzir seu significado. Situações que imaginaríamos mais modernas também mereceram a atenção dos medievos: "repicar apenas um sino" designa a ejaculação precoce; "frequentar as terras baixas" diz respeito ao sexo anal.

Alguém poderia, evidentemente, argumentar que essas brincadeiras ficavam restritas a maus poetas e ao populacho. A igreja enquanto instituição guardava moral inabalável. Bem, no início do século 15, Gianfrancesco Poggio elaborou suas "Facécias", historietas de forte caráter sexual, como a que cita o pregador de Tivoli que condena o adultério: "É um pecado tão pavoroso que eu antes queria ir para a cama com dez virgens do que com uma mulher casada". Poggio não era um poetastro ou monge obscuro, mas secretário apostólico do Vaticano. Serviu diretamente o papa Bonifácio 9º.

Em determinados períodos, a pornografia chegou a desempenhar um papel libertador. É o caso da França revolucionária do século 18. Ali era impossível dissociar a pornografia da crítica política e social. Segundo afirmou a historiadora Lynn Hunt, em "A Invenção da Pornografia Obscenidade e as Origens da Modernidade 1500-1800" (Ed. Hedra), o potencial democrático da literatura licenciosa se deve "a suas associações com a cultura impressa, com as novas filosofias materialistas da ciência e da natureza e com os ataques políticos aos regimes estabelecidos. Se todos os corpos são permutáveis 'tópos' dominante nos textos pornográficos, então as diferenças sociais e de gênero perdiam efetivamente o sentido".

A partir do início do século 19, o conteúdo eminentemente político da pornografia desaparece, e ela vai se tornando só comercial, como hoje. Ocorre, porém, que, mesmo privada de função política explícita, a pornografia conserva uma força transgressora. Acredito que seja isso que leva as "reservas morais" a condená-la.

Lucienne Frappier-Mazur mostra em seu artigo para "A Invenção..." que a palavra obscena, além de representar seu referente, o substitui como fetiche. E o fetiche, a exemplo do objeto de que faz as vezes, também é capaz de provocar prazer. A reação fisiológica de quem é exposto à pornografia não difere da de quem é colocado diante de objetos reais. Na pornografia, a palavra cria a coisa, o que subverte as leis da representação. Assistir a um filme erótico é uma experiência mais próxima do "original" do que ver encenado um assassinato, por exemplo.

Voltando às estantes das nossas bibliotecas, acho que Bukowski é digno de figurar nelas, como o seriam muitos autores de obras tidas como pornográficas. Isso nos traz problemas? É claro que traz. Muitas escolas de ensino médio atendem também alunos do ciclo fundamental. Como as bibliotecas são compartilhadas, ofertar material com conteúdo sexual a adolescentes a partir de 15 anos é também facultá-lo aos mais jovens.

E não é só. A escola, mesmo sendo laica e pluralista, precisa, justamente por seu pluralismo, respeitar a opinião de pais eventualmente conservadores, que considerem textos como o de Bukowski ofensivos. Isso não significa, é óbvio, que devamos dar a pais poder de veto sobre os títulos das bibliotecas. Respeitar não implica ceder ou capitular.

Na hipótese de haver reclamações, professores podem trabalhar em sala de aula os conceitos de tolerância e crenças religiosas. É mais ou menos o que ocorre na própria sociedade. A desaprovação de alguns à pornografia não impede que ela exista nem que seja vendida nas bancas de jornais próximas às casas dos que a repudiam. A democracia preserva tanto a possibilidade de ter acesso à obra como o direito de não lê-la. É do conflito dialético entre as partes alunos, pais, professores e diretores que esses atores poderão chegar a uma solução satisfatória. E não se deve esquecer de que, em certos casos, jovens de 15 ou 16 anos devem ter direitos mesmo contra seus responsáveis legais. Se um jovem de 16 anos já tem capacidade para votar, tem também para decidir o que vai ler.

Nessas complicadas micronegociações da liberdade, a única coisa inaceitável é que o Estado tome em mãos a caneta do censor.

hélio schwartsman

Hélio Schwartsman é bacharel em filosofia, publicou 'Aquilae Titicans - O Segredo de Avicena - Uma Aventura no Afeganistão' em 2001. Escreve de terça a domingo.

 

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