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hélio schwartsman

 

26/09/2002 - 00h00

A voz do povo

"Vox populi, vox Dei" ("A voz do povo é a voz de Deus"). A frase traduz à perfeição o clima que tomou conta dos comandos de campanha dos principais candidatos a cargos executivos.

Se o povo quer empregos, Luiz Inácio Lula da Silva e José Serra, os dois principais postulantes, não hesitam nem por um instante em prometer milhões deles. Pessoalmente, prefiro a polêmica swiftiana sobre o lado pelo qual ovos devem ser quebrados, se pela ponta mais larga ou pela mais estreita, mas devo reconhecer que a disputa um pouco fabricada pela equipe de Serra, é preciso dizê-lo em torno dos 10 milhões ou dos 8 milhões de empregos é igualmente surreal.

Não se trata de um fato isolado. Luiz Inácio Lula da Silva, o líder nas pesquisas, diante de uma platéia de militares, foi capaz de defender o serviço militar obrigatório, criticar a assinatura do Tratado de Não-Proliferação Nuclear e, como uma metralhadora, ainda elogiar o Sivam, o programa de construção de um submarino nuclear, da Marinha, e o projeto do Veículo Lançador de Satélites, da Aeronáutica. Serra, para não ficar atrás, também defendeu o serviço militar obrigatório e aumentos de verbas para os militares. Só que, a fim de frisar as diferenças entre as duas candidaturas, afirmou que é favorável ao Tratado de Não-Proliferação Nuclear. O detalhe é que ambos foram perseguidos pelo regime militar. Teriam razões para querer distância desse pessoal.

Não estou de modo algum sugerindo que dê no mesmo eleger Lula, Serra ou qualquer outro dos principais concorrentes. Existem importantes diferenças entre eles, seja no plano de suas biografias, seja no da política propriamente dita. Ainda que as campanhas, dominadas por marqueteiros, se esforcem por esconder posições políticas que possam de algum modo espantar eleitores potenciais, elas existem e são significativas.

O que pretendo nesta coluna é arriscar alguns palpites sobre o alcance dessa estratégia de só dizer o que as pessoas querem ouvir, que parece ter-se tornado comum. Voltemos ao "Vox populi, vox Dei". Essa é provavelmente uma das frases mais mal citadas de toda a história, pois o autor quis expressar mais ou menos o contrário do sentido que hoje lhe atribuímos. Até onde se sabe, o primeiro a empregar a expressão foi o teólogo inglês Alcuíno (c. 735-804), numa carta em que dava conselhos a Carlos Magno: "E não devem ser ouvidos aqueles que costumam dizer que a voz do povo é a voz de Deus, pois a impetuosidade do vulgo está sempre próxima da insânia". Para os que curtem latim: "Nec audiendi qui solent dicere, Vox populi, vox Dei, quum tumultuositas vulgi semper insaniae proxima sit". Alcuíno talvez tenha exagerado, mas é fato que o povo nem sempre está certo, ou democracias jamais cometeriam erros, e a história da humanidade seria outra.

A pergunta que proponho é, no fundo, muito simples: o político deve prometer o que as pessoas querem ouvir, conquistar o poder e, aí sim, "melhorar" o mundo, ou tem a obrigação de "educar" as massas, dizendo sempre o que julga ser o certo, mesmo que isso vá contra a opinião corrente? A resposta não é trivial.

A posição filosoficamente mais cômoda é, sem sombra de dúvida, a de sempre enunciar o que se acredita ser a verdade. Se o candidato acha que a solução para o problema da criminalidade passa pelo direito penal mínimo, por só mandar para a cadeia criminosos que representem ameaça física para a sociedade, não deve sair por aí defendendo penas mais duras só para ganhar votos. Na hipótese de vencer teria, depois, ou de faltar com a palavra empenhada ou de violentar seus princípios. Para evitar constrangimentos como esses que poderiam até prejudicar sua carreira política mais para a frente, convém que ele diga desde logo o que realmente pensa e de fato está inclinado a fazer.

É claro que as coisas não são tão simples. Numa sociedade de massas complexa como é a brasileira, em que há tantos interesses contraditórios em jogo, um candidato a presidente que levante seu superego se ponha a dizer tudo o que pensa, sem nenhum filtro político, estará fadado a amargar muitas derrotas.

Não, não estou propondo uma "zona de amoralidade" como meu amigo e mestre José Arthur Giannotti. Reconhecer que dizer sempre a verdade pode prejudicar em uma eleição não implica defender que os concorrentes podem mentir livremente, que devem prometer tudo a todos sem se preocupar com as consequências, desde que conquistem o poder.

E vale notar que, ao longo da conturbada história do século 20, já se propuseram "justificativas" teóricas para esse tipo de posição. Elas apregoavam a superioridade dos fins sobre os meios. Tiveram invariavelmente consequências trágicas.

Acredito que as atuais campanhas atravessam o que chamarei de crise de tecnologia. Num passado nem tão remoto, na era dos palanques, o candidato se dirigia a públicos mais ou menos segmentados: a população da cidade X, os metalúrgicos da fábrica Y e assim por diante. Hoje, com os modernos meios de comunicação e uma ajudinha de legislação que criou a propaganda eleitoral gratuita o postulante se dirige de uma só vez a milhões e milhões de pessoas. Mesmo quando o político fala nos velhos palanques, que sobrevivem, a onipresença da mídia cuida de levar os discursos à população em geral.

É um fenômeno em princípio bastante salutar, tanto para o candidato como para os eleitores. Mais gente fica sabendo o que cada concorrente propõe. E informação é fundamental para a democracia.

O problema e a dialética assegura que cada "solução" traz também o seu problema é que, ao falar quase que instantaneamente para milhões de cidadãos, o candidato leva ao paroxismo a tendência de medir as palavras para não perder votos. O resultado seriam apenas campanhas anódinas, em que evitar erros é fundamental.

Mas não é só. Uma outra conquista da modernidade, as pesquisas quantitativas e qualitativas, tornaram muito simples aferir os anseios e temores da população, algo que, no passado, dependia exclusivamente da sensibilidade dos políticos. Nunca foi tão fácil descobrir, e "cientificamente", o que o povo quer ouvir.

Esse fenômeno, ao lado da preponderância dos meios de comunicação de massa, faz com que a forma mais efetiva de angariar simpatias talvez a única efetiva, dada a concorrência seja dizer diante das câmaras o que as pessoas querem ouvir. Não surpreende, portanto, que as campanhas "viáveis" estejam tão parecidas, ainda que o mesmo não se possa dizer das candidaturas.

Não sou muito pessimista nesse ponto. Acho que é uma questão de mais dois ou três pleitos para que os eleitores se dêem conta desse efeito e "se vacinem" contra ele, como aparentemente se imunizou em relação a ataques gratuitos, algo que já funcionou bem no passado. A política, a arte de administrar conflitos, deverá então ganhar uma nova oportunidade para tornar-se explícita, porque ela não desapareceu, apenas foi momentaneamente escondida pelos marqueteiros.

O que me incomoda nesse processo todo é que os candidatos vão dizendo tantas bobagens passam tão perto da insânia, para retomar o termo usado por Alcuíno, que eu chego a torcer para eles estarem todos mentindo, para que, chegando ao poder, esqueçam rapidamente algumas das tolices que estão prometendo.

hélio schwartsman

Hélio Schwartsman é bacharel em filosofia, publicou 'Aquilae Titicans - O Segredo de Avicena - Uma Aventura no Afeganistão' em 2001. Escreve de terça a domingo.

 

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