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hélio schwartsman

 

25/06/2009 - 00h05

Entre o conselho e a ordem

Tenho uma boa notícia para você, leitor. Agora você já pode acreditar no que eu escrevo, porque, desde o último dia 17, não sou mais um charlatão. O Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu em caráter definitivo que o diploma de jornalismo não é necessário para o exercício regular da profissão.

Como sói acontecer, todos os ministros do chamado Pretório Excelso presentes à sessão menos o Marco Aurélio Mello concordaram que a exigência do canudo violava os princípios constitucionais da liberdade de imprensa e da livre manifestação do pensamento.

Partilho dessa opinião. Não que até o dia 17 o Brasil vivesse sob o signo de Ahmadinejad, num estado de absoluto arbítrio e misericordiosa censura. Mas é forçoso reconhecer um país no qual se dispensam controles para definir quem pode e quem não pode escrever em jornais está mais perto da plenitude liberal democrática. Nunca é demais recordar que o decreto-lei 972/1969, que estabelecia a exigência do diploma, foi baixado pelo governo militar durante os anos de chumbo.

Não é esse, porém, o aspecto do julgamento que eu gostaria de ressaltar. O que me parece ser o ponto central é a questão da liberdade de ofício. O inciso XIII do artigo 5º da Carta estabelece: "É livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer". Um velho provérbio alemão assevera que o diabo se esconde nos detalhes. Em que casos convém que o legislador regulamente uma profissão?

A maioria das pessoas dotadas de justo quinhão de bom senso tende a concordar que o licenciamento só é necessário para ofícios que requeiram um saber técnico bastante preciso, como medicina e engenharia, ou exijam alguma perícia específica, a exemplo de piloto de avião, cuja ausência represente ponderável risco para a população.

Um jornalista até pode divulgar informações falsas que acabam provocando grandes estragos. Mas buscar um conjunto de matérias teóricas que capacitem um estudante a tornar-se um bom repórter ou editor é tarefa fadada ao fracasso. Trocando em miúdos, podemos afirmar que o engenheiro, para fazer com que a ponte fique em pé, precisa ter cursado cálculo I e II e conhecer certas noções de física que podem ser aprendidas nas escolas politécnicas. O médico, para receitar uma droga, precisa saber algo de bioquímica e farmacologia. Mas o que dizer do jornalista? O que ele precisa além de noções de português (em tese obtidas no processo de alfabetização) e de disposição para estudar um pouco o assunto de que vai falar? Talvez, se houvesse as disciplinas verdade I, II, III e IV, reconhecidas pelo MEC... Nunca é demais insistir, ninguém se torna ético só porque assistiu a aulas de ética na faculdade de filosofia. Afirmar, como se faz por aí, que escolas de jornalismo são garantia de bom comportamento moral no exercício da profissão faz tanto sentido quanto dizer que quem vai à missa não comete pecados.

Um dos grandes problemas do Brasil é que nos assombra um espírito ligeiramente fascista, que inspira as pessoas a verem-se, não como cidadãs de uma República, mas como representantes de um determinado segmento social que seria detentor de certos direitos naturais. Nesse esquema, a ação política consistiria em inscrever em lei as reivindicações decorrentes desses supostos direitos e esperar que o Estado as implemente. Tornamo-nos o país das corporações, onde cada grupo seja ele profissional, racial ou simplesmente unido por interesses comuns, procura encastelar-se numa capitania hereditária e, valendo-se da autoridade do poder público, impor seus interesses de classe ao restante da sociedade.

A dificuldade é que, como todo mundo tenta fazer o mesmo, o arcabouço legislativo nacional se torna uma barafunda de reivindicações sindicais promovidas a norma geral. Pior, elas são tantas que fatalmente se revelarão contraditórias. É nesse contexto que se inscrevem as guerras entre médicos e enfermeiros em torno das casas de parto ou entre psiquiatras e psicólogos, otorrinolaringologistas e fonoaudiólogos, oftalmologistas e optometristas pelo direito de diagnosticar. Pior para os pacientes e, por conseguinte, para a sociedade.

Como lembrou o sempre sensato ministro Celso de Mello, a regra geral deveria ser a liberdade de ofício. Entretanto, ele contou pelo menos cinco projetos de lei que tramitam no Congresso e tratam da regulamentação das profissões de modelo de passarela, designer de interiores, detetives, babás e escritores. Acrescento, por minha conta, as de demonstrador de mercadorias (PL 5451/09), cerimonialista (PL 5425/09), educador social (PL 5346/09), fotógrafo (PL 5187/09), depilador (PL 4771/09). Já resvalando no reino da fantasia, busca-se também regulamentar a ocupação de astrólogo (PL 6748/02) e terapeuta naturista (PL 2916/92). Pergunto-me como nossos solertes parlamentares puderam se esquecer de regular os ofícios de Papai Noel e das indispensáveis fadas.

Em muitos casos, as propostas são oportunamente esquecidas nos escaninhos do Legislativo (há um lado bom na inoperância do Congresso), mas nem sempre. Categorias mais poderosas como a de médicos e advogados obtiveram o que seria impensável num Estado verdadeiramente republicano. Os discípulos de Esculápio, por exemplo, conseguiram transformar em lei geral o Código de Ética que eles mesmos elaboraram. Já nossos nobres causídicos deram um novo significado à noção de lobby ao inscrever não em lei ordinária mas na própria Constituição o direito de indicar juízes para praticamente todas as cortes do país e de propor ações diretas de inconstitucionalidade (privilégio reservado a poucos). Pior, cuidaram para que a Lei Maior do país trouxesse um dispositivo que atua como impedimento a que o cidadão represente a si mesmo em juízo --erro lógico que nega o próprio conceito de cidadania.

Gostaria que a extinção da exigência de diploma de jornalista fosse o primeiro passo num movimento mais geral de descorporativização do Estado, mas receio que seja apenas um caso isolado. A mentalidade cartorial-corporativista está bem arraigada na alma do brasileiro. É uma pena. Esse seria um bom momento para mudanças. As divisões clássicas entre as ciências estão ruindo. Faz cada vez menos sentido compartimentalizar o saber --e, consequentemente, o ensino-- em ramos pré-definidos como física, química, biologia. A pesquisa de ponta se faz hoje através de casamentos improváveis como aquele entre médicos e matemáticos (medicina baseada em evidências) ou entre economistas e neurocientistas (economia comportamental). A perseverar a inércia patrimonialista, enquanto o mundo estiver produzindo nova e boa ciência, nós por aqui estaremos paralisados: não teremos os especialistas necessários porque eles não saberão se devem contribuir para o conselho de biólogos ou a ordem dos estatísticos.

hélio schwartsman

Hélio Schwartsman é bacharel em filosofia, publicou 'Aquilae Titicans - O Segredo de Avicena - Uma Aventura no Afeganistão' em 2001. Escreve de terça a domingo.

 

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