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hélio schwartsman

 

10/06/2010 - 00h02

Direito na marra

Hoje celebro um empate. Deu no Datafolha que 48% dos eleitores são favoráveis e 48% são contrários à obrigatoriedade de votar. Se esses números não são meras flutuações aleatórias e refletem uma tendência, a situação está mudando para melhor. No levantamento anterior, de dezembro de 2008, 53% dos entrevistados se haviam manifestado favoráveis ao voto compulsório e apenas 43% contrários a ele.

Não vou aqui tentar disfarçar minha opinião veementemente oposta ao sufrágio na marra. Não pretendo, com isso, desmerecer a posição de muitos sociólogos que são favoráveis ao instituto. A questão é que eles estão preocupados em garantir a maior participação possível de todos os estratos sociais bem como alavancar a legitimidade dos candidatos eleitos. Nada contra isso. Penso, porém, que há antes uma questão filosófica a resolver. Como esbocei num pequeno comentário que foi publicado na edição impressa do jornal, é preciso, antes de mais nada, decidir se o voto é um direito ou um dever. Desconfio bastante da ideia de que algo pode ser os dois ao mesmo tempo, como requer a noção de comparecimento às urnas obrigatório.

De modo geral, direito é algo que é facultado a seu titular exercer ou deixar de fazê-lo. Seria absurdo tentar tornar compulsórias outras garantias essenciais como a liberdade de expressão ou o direito de ir e vir. As implicações para a tranquilidade pública e a fluidez urbana seriam as piores possíveis.

De modo análogo, apenas os mais tarados reclamarão para si o direito de pagar impostos ou de prestar o serviço militar.

Uma forma de solucionar o problema da ambiguidade direito-dever seria classificar o voto pura e simplesmente como um dever. Nesse caso, evitaríamos a armadilha lógica, mas poríamos a perder a noção de liberdade que subjaz ao conceito de direito. É uma contaminação problemática, pois, no limite, nosso voto se tornaria menos livre.

Acho que vale a pena retornar aqui a uma distinção proposta pelo bom e velho Immanuel Kant. Numa versão muito simplificada do que afirmou o filósofo de Königsberg, há duas formas de cumprir uma obrigação. Podemos estar agindo "de acordo com o dever", ou "pelo sentido do dever". Quando respeitamos a velocidade máxima de uma estrada por medo de receber uma multa, estamos agindo "de acordo com o dever". Mas podemos também observar o limite de velocidade por acreditar que ele está de acordo com a racionalidade humana, que proporciona segurança e promove a paz no trânsito, por exemplo. Nesse caso, agimos "pelo sentido do dever".

Quando eu deixo de correr mais por acreditar na norma do que pelo medo da multa (nem para Kant nós somos inteiramente racionais o tempo todo) sou mais livre do que na hipótese inversa. Estou agindo menos por interesse próprio e mais porque decidi exercer minhas faculdades morais, o que, para Kant, é um fim em si mesmo. Mais até, é aí que reside a base da dignidade humana. Animais, diferentemente de homens, não podem escolher seguir a lei.

Transpondo esse raciocínio para o voto, ao torná-lo obrigatório nós de algum modo reduzimos o grau de liberdade que existe por trás da decisão espontânea do cidadão de ir à seção eleitoral e escolher um candidato. Podemos afirmar que o sufrágio constrangido pela lei é menos moral do que o espontâneo, resultado da deliberação de um sujeito autônomo. E, para Kant, há uma identidade entre ser livre e ser moral.

Outro argumento a favor do voto facultativo de que gosto é o das companhias. Sei que, epistemologicamente, é mais capenga do que qualquer outro, mas ninguém vai me convencer de que é melhor estar ao lado de países como Chipre, Equador, Fiji, Líbano (a obrigatoriedade é só para os homens), Bélgica e Austrália (para que não digam que eu escondi as duas nações industrializadas com comparecimento compulsório) do que de Estados como Suécia, Dinamarca, EUA, Reino Unido (onde o voto é facultativo).

Em pelo menos dois países onde o voto era obrigatório, a Holanda e a Áustria, os legisladores tiveram o bom senso de reverter a situação. Em vários outros, adotou-se a saída mais fácil de apenas deixar de aplicar as sanções previstas.

Voltemos agora aos defensores da obrigatoriedade. Sua alegação mais forte, a meu ver, é a de que uma eventual "abolição" não seria neutra. Como ocorre em todos os países onde a participação não é compulsória (e, em menor grau, também onde o é), são sempre os mais pobres e menos instruídos que menos comparecem. Assim, sustentam, o fim da obrigatoriedade seria uma forma de elitizar a votação e excluir os menos favorecidos.

Não discordo de que esse tende a ser o efeito. Mas acho que há uma diferença importante entre deixar que cada um escolha por si mesmo se quer ou não votar e criar barreiras calculadas para afastar os mais pobres --que é o que fazem alguns Estados norte-americanos, com legislações exóticas que impedem ou dificultam enormemente o alistamento de grupos específicos como ex-detentos, moradores de rua. Na verdade, trata-se de um "non sequitur" a ideia de que o sujeito está preparado para escolher o dirigente máximo da nação, mas não para decidir se vai ou não depositar seu voto na urna.

E isso nos coloca diante do principal raciocínio dos defensores do voto facultativo, que é o de que a liberdade levaria a uma melhora qualitativa da votação, pois haveria seleção daqueles que estão mais interessados no processo. Também acredito que esse efeito se materializaria, embora eu mesmo defenda a "abolição" mais pelas razões estritamente filosóficas do que pelas implicações práticas.

Assim, se cruzarmos os dois argumentos (o da diminuição do comparecimento dos estratos menos favorecidos e o da melhora da qualidade), podemos chegar muito perto de concluir que são os pobres que estragam a democracia. Não vou tão longe. Não sou um demófobo, mas tampouco tenho fetiche pela pobreza.

O que me parece estar em jogo aqui é, na verdade, um fenômeno até simples de superposição de categorias. Os mais instruídos são normalmente mais ricos do que quem não estudou. Normalmente, são também os mais escolarizados que se interessam mais pelo processo político e que declaram ter mais preocupação com o nível ético e intelectual dos políticos que escolhem. Podemos a partir daí concluir que ricos sempre votam bem e pobres mal? Não. Só o que podemos inferir, a meu ver, é que existe uma razão para desejarmos que todas as crianças frequentem a escola --o que está longe de ser uma tese polêmica.

hélio schwartsman

Hélio Schwartsman é bacharel em filosofia, publicou 'Aquilae Titicans - O Segredo de Avicena - Uma Aventura no Afeganistão' em 2001. Escreve de terça a domingo.

 

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