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hélio schwartsman

 

17/06/2010 - 00h02

O incesto é um problema?

"Julie e Mark são irmãos. Eles estão de férias da universidade, fazendo uma viagem pela França. Uma noite, sozinhos num bangalô à beira da praia, decidem que seria legal e divertido se fizessem amor. Julie já estava tomando pílulas anticoncepcionais, e Mark resolveu que usaria também uma camisinha, só para garantir... Os dois fazem sexo e gostam da experiência. Combinam de mantê-la em segredo e jamais repeti-la. O que você acha disso? O que eles fizeram é correto?"

Esse dilema moral foi proposto pelo psicólogo Jonathan Haidt. Se você, como a esmagadora maioria das pessoas, torceu o nariz para a estripulia de Julie e Mark, saiba que teve uma reação emocional bastante humana, mas muito pouco racional. Objetivamente, não há nenhum problema na experimentação dos irmãos: ela lhes proporcionou um pouco de prazer, algum tipo de conhecimento e não gerou consequências negativas para ninguém. Como condenar o que produz um pouco de bem e nenhum mal?

Faço essas considerações sobre o incesto a propósito do caso do lavrador maranhense José Agostinho Bispo Pereira, que teria, durante 16 anos, vivido maritalmente com a própria filha. Dessa união, teriam nascido sete crianças, que seriam ao mesmo tempo filhas e netas de Pereira.

A crer no que foi divulgado pela polícia, há flagrantes diferenças entre a história do Maranhão e a de Julie e Mark. Além do fato de uma ser real, e a outra, fictícia, o caso de Pereira não seria assim tão benigno. Nada indica que a filha-mulher tenha assentido livremente com a relação. Muito pelo contrário, pode ter havido violência. Pereira foi preso sob a acusação de manter a filha-mulher sob cárcere privado. Suspeita-se ainda que a consanguinidade seja responsável pelo retardo mental de um dos filhos-netos.

Voltemos, porém, à questão do incesto como categoria, seja ela biológica, antropológica, cultural, ou, mais provavelmente, uma mistura disso tudo.

Embora Sigmund Freud tenha popularizado a noção de que todo mundo deseja inconscientemente copular com seu genitor de sexo oposto (complexos de Édipo e Electra), a psicologia evolutiva oferece uma interpretação um pouco diferente para a questão do incesto.

O primeiro ponto a observar é que relações incestuosas entre pais e filhos e entre irmãos são extremamente raras (muito mais raras do que seriam se apenas leis e disposições culturais nos impedissem de consumá-las). A história do Maranhão seria, assim, uma daquelas exceções que confirmam a regra.

Ainda não se convenceu? Vamos a um outro experimento mental. Somos cerca de 7 bilhões de terráqueos, e, nos últimos cinco anos, a imprensa mundial registrou não mais do que meia dúzia de casos como o de Pereira, sendo o mais ilustre deles o do austríaco Joseph Fritzl (aliás, todos ganharam o apelido de "o Fritzl + nacionalidade"). A título de comparação, se fôssemos computar todas as ocorrências de crimes contra a liberdade sexual envolvendo não parentes publicadas na mídia planetária ao longo do último quinquênio, teríamos material para preencher vários catálogos telefônicos.

A grande verdade é que, apesar da repulsa que nos causa (ou justamente em virtude dela), o incesto não se conta entre as questões de saúde pública, quase nunca vira um caso nos tribunais e tampouco é uma preocupação de educadores. Ele é, no chiste do linguista Steven Pinker, como comer cocô de cachorro: não se trata de um problema porque praticamente ninguém quer fazer.

Tal repulsa faz sentido do ponto de vista biológico. De um modo geral, o incesto é uma péssima ideia. A consanguinidade aumenta consideravelmente o risco de doenças genéticas se manifestarem, o que pode diminuir a capacidade de sobrevivência da prole. Cada um de nós carrega entre um e dois genes responsáveis por moléstias recessivas fatais, o que torna o sexo com um familiar próximo o equivalente genético da roleta russa.

Vale também observar que várias outras espécies animais, e até algumas vegetais, desenvolveram mecanismos que, com diferentes graus de eficácia, evitam a reprodução que favoreça a homozigose.

É aqui que as coisas começam a ficar complicadas em termos de engenharia de software. Não é fácil, afinal, conciliar na mesma cabeça o sistema que nos faz ter engulhos diante da simples ideia de copular com irmãos e genitores com a tendência, também inscrita em nossas mentes, de preferir parentes a estranhos em tudo o que não tem a ver com sexo (como o prova o nepotismo).

Dois experimentos naturais apontam os caminhos pelos quais a natureza pode ter resolvido esse paradoxo. Um deles ocorreu nos "kibbutzim" (fazendas coletivas) israelenses onde todas as crianças da comunidade eram criadas juntas. Contrariando as expectativas de pais e educadores, depois que cresceram elas desenvolveram o que parece ser uma repulsa por relacionamento sexual com membros do grupo, que acabam sendo encarados como irmãos, apesar da ausência de laços de parentesco. O mesmo efeito foi observado em certas regiões da China rural, onde noivas de poucos anos de idade eram levadas para viver na casa se seus futuros maridos para já ir se acostumando com o ambiente onde viveriam. Depois de crescido, o casal negava fogo. Esses achados parecem dar força à hipótese do antropólogo finlandês Edward Westermarck, contemporâneo de Freud, para quem o excesso de familiaridade (ser criado junto, por exemplo) apaga qualquer traço de desejo sexual --o exato oposto do que dizia o psicanalista austríaco.

A biologia não nos dotou com um detector de parentesco, mas é capaz de utilizar pistas sociais para descobrir suspeitos de consanguinidade. A criação em comum é a mais importante delas. "Kibbutzim" e casamentos chineses arranjados, afinal, não faziam parte da paisagem cultural de nossos antepassados caçadores-coletores.

Cuidado, essa interpretação de viés mais biológico proposta pelas ciências cognitivas não invalida outras, de caráter mais antropológico-cultural. Na verdade, elas podem complementar-se. Já que casamentos intrafamiliares são carta fora baralho, cria-se um excedente de noivos e noivas que podem ser utilizados para forjar alianças com outros clãs. Também se pode aproveitar a ideia de interditos sexuais para criar outras proibições, que reproduzam ou ampliem relações de poder. Parece ser esse o caso do tabu envolvendo o sexo com madrastas. Nas sociedades poligâmicas, é uma forma de evitar que o filho compita com o pai por suas esposas mais jovens.

Embora um certo jornalismo goste de atribuir à miséria todas as mazelas humanas, nem tudo o que acontece de errado com a espécie tem origem na má distribuição da renda. Situações que nos provocam fortes respostas emocionais costumam estar profundamente implantadas em nossa história evolutiva. E o que vem com a marca da repugnância costuma significar algo que deve ser evitado ("trust your instincts"), não algo que secretamente desejamos. Se Freud tivesse lido Sófocles com um pouco mais de atenção, teria dado mais valor à moral da história: Édipo jamais desejou matar o pai nem dormir com a mãe; se o fez, foi porque ignorava a identidade dos envolvidos; e, quando descobriu a verdade, cegou a si próprio.

hélio schwartsman

Hélio Schwartsman é bacharel em filosofia, publicou 'Aquilae Titicans - O Segredo de Avicena - Uma Aventura no Afeganistão' em 2001. Escreve de terça a domingo.

 

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