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hélio schwartsman

 

29/07/2010 - 00h02

Piada de mau gosto

Desde que, há alguns anos, meus filhos gêmeos David e Ian assumiram o comando do controle remoto da TV, não assisto a canais abertos, mas apenas a comédias idiotas e filmes de ação. Assim, faz bem alguns quinquênios que não vejo o "Casseta & Planeta". O "CQC", então, acho que jamais experimentei. Apesar de minha ignorância na matéria, considero preocupante a notícia que li na Folha de que, em virtude dos excessos regulatórios expelidos pelo TSE (Tribunal Superior Eleitoral), esses programas estão desistindo de fazer piadas com políticos daqui até outubro.

Preocupante, aqui, não é força de expressão. O humor, como procurarei mostrar nesta coluna, desempenha importantes funções sociais. Blindar os poderosos de seus efeitos corrosivos não apenas configura uma atitude ligeiramente fascista como ainda nega os elementos mais básicos da política humana.

Comecemos, porém, pelo começo. O texto desta semana deverá ficar um pouco maior que o normal, mas prometo, em contrapartida, contar várias piadas.

O riso e o humor sempre representaram um desafio à compreensão, primeiro de filósofos e, mais recentemente, de psicólogos e neurocientistas. Na verdade, não sabemos direito por que rimos e muito menos por que rimos de bobagens.

Do ponto de vista fisiológico, rir é um reflexo, mais especificamente uma resposta do sistema nervoso autônomo --no caso, o vago parassimpático-- a um estímulo. O problema é que, ao contrário de outros reflexos, o riso não possui um propósito claro como tem, por exemplo, o fechamento dos olhos quando da aproximação de um objeto. Devemos admitir que o riso é importante --ou a evolução não o teria preservado--, mas não sabemos explicar bem por quê.

Rir também é o único reflexo que pode ser disparado por atividades altamente intelectualizadas como a leitura. O filósofo francês Henri Bergson (1859-1941) em seu saboroso "Le Rire" (o riso) define o cômico como essencialmente humano. Mesmo quando rimos de um chapéu engraçado, não estamos rindo do pedaço de feltro ou palha, mas da forma que lhe foi dada pelo "capricho" de uma pessoa. (Vale aqui frisar que nos últimos anos surgiram evidências de que chimpanzés possuem um mecanismo análogo ao riso, com a dupla função, como veremos mais abaixo, de comunicar o estado interno do indivíduo e cimentar relações sociais).

Sendo o humor mais um universal humano, ele deve obedecer a determinadas regras que explicam a um só tempo sua presença em todas as sociedades e a enorme variação de formas e estilos a que está sujeito. Na tentativa de lançar algumas luzes sobre essas normas, parto do verbete "Humour and Wit" (humor e espirituosidade), da "Encyclopaedia Britannica", de autoria do escritor Arthur Koestler (1905-1983) e que se tornou um clássico dos estudos sobre o tema. Retomando a discussão sobre a "gramática" do humor, Koestler afirma que rimos quando percebemos um choque entre dois códigos de regras ou de contextos, todos consistentes, mas incompatíveis entre si.

Um exemplo: "O masoquista é a pessoa que gosta de um banho frio pelas manhãs e, por isso, toma uma ducha quente". Cometo agora a heresia de "explicar" a piada. Aqui, o fato de o sujeito da anedota ser um masoquista subverte a lógica normal: ele faz o contrário do que gosta, porque gosta de sofrer. Obviamente, a lógica normal não coexiste com seu reverso, daí a graça da pilhéria. Uma variante no mesmo padrão, mas com dupla inversão é: "O sádico é a pessoa que é gentil com o masoquista".

Outro bom exemplo é o do médico que conforta seu paciente dizendo: "Você está com uma doença muito grave. De cada dez pessoas que a pegam, apenas uma sobrevive. E você está com sorte, pois eu acabo de perder nove pacientes que tinham essa moléstia". O gozado aí emerge da oposição entre a abstração estatística e o a concretude do caso real do paciente.

Sabemos que a estatística só vale se não a tentarmos aplicar a casos concretos. Também sabemos que as chances de um dado evento ocorrer não dependem de eventos anteriores. A piada confunde todos esses planos.

Essa estrutura de choque de contextos excludentes entre si está presente em todas as pilhérias. Até no mais infame trocadilho, há um confronto inesperado entre o significado da palavra e o seu som: "A ordem dos tratores não altera o viaduto".

No caso do humor mais embrutecido dos programas populares, a oposição se dá entre o "script" e a da realidade. Uma "gag" típica desse gênero é a do sujeito que se transveste de mulher. As situações só se tornam engraçadas porque nós, ao contrário das pessoas que interagem com o personagem, sabemos que não se trata de um representante do sexo feminino.

Podemos agora traçar uma escala do humor, dos mais primitivos aos mais sofisticados. Bebês, que também são capazes de rir, deliciam-se com caretas e imitações. Garotos como os meus, agora com oito anos, estão na fase em que adoram piadas escatológicas. Quanto mais cocô, xixi e xingamentos, melhor. Já adolescentes gostam especialmente de anedotas sexuais, onde o choque costuma ficar entre a esfera fisiológica e a psicológica. Um exemplo é a piada dos anões tarados: "Dois anões resolvem se divertir e vão para um bordel. Depois de uns drinks, eles sobem para os quartos. Mesmo estando animadinho, um dos anões não consegue a ereção e fica ainda mais desapontado quando ouve o seu amigo no quarto ao lado:

--Um, dois, três e... já! Um, dois, três e... já! Um, dois, três e... já!

Passada a hora do programa, os anões se encontram para irem embora e o que broxou comenta: --Pô! Foi uma *! Por mais que eu me esforçasse, não consegui ter nenhuma ereção! --Ereção? --o outro anão responde, perplexo --e eu que nem consegui subir na cama".

À medida que os indivíduos crescem, vão --espera-se-- buscando formas mais sofisticadas e cerebrais de humor.

Essa "gramática" dá conta da estrutura intelectual das piadas, mas há outros aspectos em jogo. O humor também encerra dinâmicas emocionais. Ele de alguma forma se relaciona com a surpresa. Kant diz que o riso é o resultado da "súbita transformação de uma expectativa tensa em nada" ("Crítica do Juízo", I, 1, 54). Rimos porque nos sentimos aliviados. É nesse contexto que se torna plausível rir de desgraças alheias. Em alemão, até existe uma palavra para isso: "Schadenfreude", que é o sentimento de alegria ou prazer provocado pelo sofrimento de terceiros. Não necessariamente estamos felizes pelo infortúnio do outro, mas sentimo-nos aliviados com o fato de não termos sido nós a vítima.

Mais ou menos na mesma linha caminha Sigmund Freud, que também é autor de um livrinho sobre o humor ("O Chiste e Sua Relação com o Inconsciente"). Para o pai da psicanálise, gracejos funcionam um pouco como os sonhos. Teriam força orgásmica e também revelariam impulsos inconscientes.

É o aspecto emocional, acredito, que torna muito frequente no humor um elemento menos bonito: a crueldade. Como observa Bergson, muitas piadas exigem "uma anestesia momentânea do coração". Nos gracejos mais elaborados essa crueldade quase desaparece, mas ainda deixa algum traço, na forma de "malícia", "esperteza" ou mais simplesmente na suspensão da solidariedade para com a vítima (sim, piadas geralmente têm vítimas). Bergson vê o riso como um "gesto social". Para o filósofo, o temor de tornar-se objeto de riso reprime as excentricidades do indivíduo. É uma espécie de superego social portátil.

Na visão bergsoniana, o riso deixa assim de ser um movimento puramente estético, à medida em que visa também ao aperfeiçoamento da sociedade. Mas, ao mesmo tempo, conserva algo de puramente estético, porque os homens, quando já não se preocupam unicamente com sua sobrevivência individual e do grupo, podem "dar-se como espetáculo aos homens".

Numa abordagem mais contemporânea, o psicólogo evolucionista Steven Pinker também parte em busca de funções sociais. A exemplo do que ocorre com nossos primos símios, o riso e o humor são uma forma de comunicar estados internos à prova de fingimento (quem não reconhece uma risada forçada?). Isso é particularmente útil quando nos dedicamos a atividades que podem ser mal interpretadas, como as brincadeiras de luta. Elas exigem um equilíbrio delicado. Devem ser realistas o suficiente para que cumpram o objetivo de nos adestrar para batalhas de verdade, mas não a ponto de desandar para um conflito real, no qual os riscos de alguém se ferir seriamente aumentam bastante. O riso é a resposta, diz Pinker em "How the Mind Works" (como a mente funciona). Enquanto rimos, revelamos a nosso companheiro/adversário que não temos a intenção de feri-lo. Podemos seguir nos exercitando e, talvez ainda mais importante, forjando alianças políticas --que é outro nome para amizades.

É nesse contexto que se enquadra a escola judaica (desculpem, não resisti à piada) do humor autodepreciativo. Quaisquer dois indivíduos que tomemos, sempre haverá diferenças entre eles. Um será mais forte que o outro, que pode, por seu turno, ser mais bonito e inteligente, ainda que perca em riqueza e conexões sociais. Quando uma pessoa troça moderadamente de si mesma (nesse gênero, as pilhérias nunca são aniquiladoras), ela sinaliza que está disposta a diminuir um pouquinho a si própria para obter a cumplicidade do outro e rirem juntos. É, como diria Woody Allen em "Play it Again, Sam", o começo de uma bela amizade.

Só que o riso também pode ser uma arma, especialmente em ambientes mais civilizados, que trocaram pauladas e pedradas por debates. Um bom exemplo lembrado por Pinker é o gracejo antiaborto de Ronald Reagan: "--Noto que todos os que são favoráveis ao aborto já nasceram!".

Numa primeira leitura, o raciocínio seria trivial demais. É tão óbvio que todo ser humano já nasceu que nem faria muito sentido afirmá-lo. Assim, se o fazemos, estamos dividindo o mundo em duas categorias de indivíduos, os que já nasceram e os que não (os abortados), que é justamente os termos nos quais os antiabortistas querem colocar a discussão, de modo a aproximar aborto de assassinato. Apenas entender a piada já implica, portanto, ou coonestar esse enquadramento ou colocar-se como um hipócrita que goza de um privilégio (ter nascido) que não quer estender aos demais. Como argumento não é lá grande coisa, mas, como tirada é excelente e praticamente acaba com a discussão. Uma resposta exigiria no mínimo algumas centenas de palavras totalmente fora do "timing" do debate.

À medida em que mais indivíduos entram no jogo social, multiplicam-se as funções potenciais do humor. Sendo essencialmente uma forma de comunicação, o riso coletivo é capaz de sincronizar reações, o que o torna perigosamente subversivo. O paradigma aqui é a história de Hans Christian Andersen da roupa nova do rei. Na vida real, não é desprezível o papel que as piadas sobre as agruras do socialismo real desempenharam para a queda do comunismo no Leste europeu.

É claro que não é todo dia, observa Pinker, que nós temos de derrubar tiranos e humilhar reis. O mesmo mecanismo, contudo, também serve para diminuir as pretensões de gabolas, valentões, tartufos e, principalmente, políticos. Ao evitar que os candidatos se submetam ao teste do humor, o TSE priva a população da mais efetiva das armas de que ela dispõe para defender-se das maquinações e truques dos políticos e seus marqueteiros. É mais um pequeno desserviço do tribunal à democracia.

hélio schwartsman

Hélio Schwartsman é bacharel em filosofia, publicou 'Aquilae Titicans - O Segredo de Avicena - Uma Aventura no Afeganistão' em 2001. Escreve de terça a domingo.

 

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