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hélio schwartsman

 

19/08/2010 - 00h01

A cartilha da discórdia

A intenção até que era boa. A ideia era compilar uma espécie de dicionário das diferenças culturais entre os povos, para que os britânicos não deem vexame na hora de receber as hordas de turistas estrangeiros que irão a Londres para os Jogos Olímpicos de 2012.

No papel, faz todo o sentido. Regras de etiqueta são o paraíso do relativismo cultural. Se, na ética e na lei existem alguns universais (todos os códigos morais e sistemas legais do mundo proíbem o assassinato, por exemplo), é difícil não ver o dedo caprichoso do arbítrio na norma social, vigente no Japão e em outros países do Oriente, que considera ofensivo mostrar ao interlocutor a sola do sapato. Por que não o cotovelo ou a língua?

E, em algumas situações, não basta que uma parte conceda à outra o benefício da ignorância para evitar a saia justa. Mesmo que um árabe muçulmano em visita ao Brasil saiba que os brasileiros não têm a obrigação de conhecer as leis dietárias islâmicas, haverá mal-estar se o prato oferecido na recepção for uma suculenta feijoada.

Foi assim que nasceu a famigerada cartilha do VisitBritain, a agência oficial de turismo do Reino Unido. Sobre os brasileiros, ela diz: "têm uma noção de espaço pessoal menor do que outras culturas". Afirma que sempre chegamos atrasados, vestimo-nos de modo provocativo, interrompemos as conversas a todo instante e damos beijos e abraços a roldão. Sugere ainda que os ingleses nunca nos questionem sobre informações pessoais, como idade, salário e estado civil.

Se você achou um pouco ofensivo, não viu muito. Para a cartilha, os argentinos são pavio-curto e não têm o menor senso de humor. É preciso muito cuidado com a forma de servir-lhes o vinho, pois um pequeno erro num intricado sistema de gestos pode provocar um incidente.

Como o leitor já deve ter intuído, sobram palavras e definições que tendem a ser vistas como pouco amáveis por dezenas de povos e nações. A publicação, que deveria ajudar os turistas a ser bem recebidos em Londres, foi um tiro pela culatra, que está provocando protestos em todo o mundo. Até o momento em que escrevo estas linhas, já li três colunas que invectivavam contra a cartilha, tachando-a de preconceituosa e generalizante.

Evidentemente, não cabe a mim defender a iniciativa britânica, que com certeza errou na mão, ao ferir as suscetibilidades que pretendia proteger. Acho, contudo, que seria oportuna uma discussão sobre o preconceito. É o que pretendo fazer hoje.

Eu começo com uma observação de ordem prática. Os esforços da turma do politicamente correto para depurar a língua do que eles chamam de preconceito costumam, no longo prazo, dar com os burros n'água. Repito aqui a historieta da palavra "cretino", que já contei em outras colunas.

Em regiões montanhosas, como a Suíça, são pobres as fontes de iodo ambiental, o que, antes do processo de iodatação do sal de cozinha, concorria para provocar uma alta prevalência de hipotireoidismo congênito (ou cretinismo). Como os bons helvéticos já eram politicamente corretos "avant la lettre", recusavam-se a chamar as crianças afetadas pela síndrome pelo nome de "idiotas". No século 18, passaram a usar o mais piedoso termo "cristão", que soava "crétin" no francês dialetal ali falado. Acabaram inventando, sem querer, a palavra "cretino", hoje de alcance mundial e politicamente incorreta.

Preconceitos podem até ser momentaneamente reforçados pela língua, mas são capazes de sobreviver muito bem sem ela. Se a categoria que se quer designar é relevante, ela subsistirá numa palavra ou fórmula perifrástica, a qual, gostemos ou não, muito provavelmente será "contaminada" pelas características positivas ou negativas do grupo a que se refere.

Receio até que nossa época veja o preconceito de forma um pouco preconceituosa. Se você quer deslegitimar uma ideia, o melhor caminho é qualificá-la como um estereótipo. A condenação já fica subentendida. Cuidado, não estou sugerindo que seja legítimo discriminar pessoas em virtude das categorias reais ou imaginárias a que ela pertence, mas esse é um problema moral e não relativo ao "preconceito".

Embora exista um bom número de estereótipos simplesmente errados, eles muitas vezes apontam para desvios estatísticos reais. Quando se afirma, por exemplo, que brasileiros costumam atrasar-se, não se está dizendo que todo brasileiro sempre atrasa, mas apenas que não é incomum que isso aconteça. Estamos lidando com médias, que são, como se sabe, um conceito traiçoeiro. No caso, para agravar ainda mais o quadro, trata-se de uma média intuída e não mensurada de forma organizada. De toda maneira, médias representam um valor obtido a partir resultados válidos para vários indivíduos, mas que não podem ser extrapolados para nenhum indivíduo em particular. Na média, a humanidade tem um testículo e um seio. Nossa experiência ensina que é perfeitamente possível encontrar um brasileiro (eu, por exemplo) mais pontual do que a média dos ingleses.

Comecemos, portanto, limpando o meio de campo, para que a discussão possa desenrolar-se de forma menos confusa.

O preconceito, a rigor, nada mais é do que um processo psicológico, uma operação mental que agrupa casos particulares numa categoria e, em seguida, generaliza características desse grupo para situações similares. E isso é apenas uma forma de pensar. Mais do que isso, a forma humana de pensar. Não é um mecanismo que possamos desligar quando não estamos satisfeitos com ele.

Essa nossa capacidade de extrair essências e projetá-las para o futuro está tanto na origem do pior racismo como também do pensamento científico. O problema, portanto, não é que pensemos pelo intermédio de preconceitos, mas que não saibamos rever nossas conclusões quando a situação assim o exige. Dispomos de outras ferramentas, como as intuições morais, notadamente a ideia de justiça, além, é claro, da razão, que nos permitem em princípio corrigir os resultados.

Tomemos o caso do preconceito contra outras culturas. Temos boas razões evolutivas para desconfiar do estrangeiro. Se um membro da tribo vizinha uma vez me atacou, é darwinianamente útil que eu parta do pressuposto de que todos aqueles que pertencem àquela tribo inimiga tentarão me agredir e antecipe o ataque. Só que esse tipo de raciocínio, que fazia sentido na pré-história, perdeu inteiramente a razão de ser em sociedades modernas, nas quais os estrangeiros deixaram de ser uma ameaça para converter-se numa fonte de receitas financeiras via turismo e de estímulos intelectuais, à medida que nos colocam em contato com outras culturas.

Se esse etnocentrismo com matizes de intolerância já foi útil para manter-nos vivos, hoje, a exemplo da capacidade de armazenar energia na forma de tecido adiposo, é apenas um estorvo. Serve para separar, gerar injustiças e fomentar violência. Temos, portanto, razões morais para repudiar o racismo e qualquer outro juízo que resulte em atitudes discriminatórias. Mas o problema, vale frisar, é de ordem moral e não deve colocar sob suspeição todo e qualquer raciocínio indutivo. Já é hora de acabar com o preconceito contra o preconceito.

hélio schwartsman

Hélio Schwartsman é bacharel em filosofia, publicou 'Aquilae Titicans - O Segredo de Avicena - Uma Aventura no Afeganistão' em 2001. Escreve de terça a domingo.

 

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