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hélio schwartsman

 

11/11/2010 - 07h00

O papel da imprensa

É pior do que eu pensava. Esperei pacientemente o fim do pleito para fazer meu balanço do governo Lula, a fim de que ninguém me acusasse de tomar partido no jogo eleitoral. Imaginei que, fechadas as urnas e proclamado o resultado, ninguém seria paranoico o bastante para ver num simples texto de análise tentativas de golpe ou manipulação. Estava enganado. Dos mais de 700 comentários e dezenas de e-mails que minha coluna da semana passada (Gestão Lula, sucesso ou desastre) provocou, uns bons 70% me atribuíam inclinações peessedebistas ou me recriminavam por não ouvir a voz do povo.

Bem, para gáudio geral da nação, nunca fui e nunca serei candidato a nenhum cargo eletivo, o que me isenta de beijar criancinhas e enfrentar maioneses suspeitas. Mais do que isso, entre os muitos vícios (ou virtudes, cada um leia como quiser) de que posso ser acusado, não está o tucanismo. Para citar apenas dois entre muitos exemplos, em 2001, quando da crise de energia elétrica, defendi a renúncia do então presidente Fernando Henrique Cardoso. Mais recentemente, em 2006, fiz duras críticas a José Serra por, contrariando promessa de campanha, ter renunciado à prefeitura de São Paulo a fim de disputar o governo do Estado. Evidentemente, há um número ainda maior de textos atacando o PT. O desequilíbrio, entretanto, deve-se mais a fatalidades espaço-temporais do que a preferências partidárias: minha coluna, que estreou no início de 2000, acompanhou os oito anos da gestão Lula contra apenas três de FHC.

Não apelei ao arquivo para enaltecer minha "neutralidade" enquanto analista. Mas, como pretendo mostrar até o final deste texto, a imprensa tem um papel institucional na sociedade que, por razões de ordem psicológica, muitas vezes deixamos de enxergar.

De um modo geral, é muito fácil achar quem esteja disposto a elogiar governantes e com eles travar relações de proximidade. Buscar o melhor posicionamento social possível é um comportamento que está inscrito em nosso DNA e no de todos os mamíferos que vivem em bandos.

Em sociedades mais complexas, entretanto, como as humanas e de chimpanzés, em que os indivíduos buscam ao mesmo tempo a ordem e a funcionalidade proporcionadas pelo respeito à hierarquia e uma certa segurança contra os abusos do despotismo, desenvolve-se o que o primatologista Frans de Waal chamou de "balanço de poder", no qual, para contrapor-se ao impulso de dominação exercido pelo macho alfa e seus próximos, surge uma espécie de aliança de opositores, que modula a força da facção situacionista.

Como o caminho mais fácil é quase sempre o de colocar-se do lado dos poderosos, a imprensa adquire um papel especial ao possibilitar que as ideias que fazem as vezes de contrapeso circulem mesmo sem as facilidades proporcionadas pela força dos consensos momentâneos e da máquina pública. Isso é especialmente relevante quando se tem uma oposição pouco entusiasmada, como é o caso do Brasil hoje.

Não é um acaso que os teóricos da democracia, notadamente os "philosophes" do Iluminismo francês e os "founding fathers" dos EUA, tenham dado tanto destaque à liberdade de imprensa. Thomas Jefferson chegou a escrever: "Se me fosse dado decidir se devemos ter um governo sem jornais, ou jornais sem um governo, não hesitaria um momento em preferir a última". Trata-se, obviamente, de um rematado exagero, mas que dá bem a medida da importância de um sistema de freios e contrapesos ("checks and balances") ao poder do Estado.

Não estou, com essas colocações, dizendo que a imprensa precisa necessariamente ser de oposição. Jornais chapa-branca ou apenas pouco críticos são perfeitamente legítimos. Eles apenas acrescentam institucionalmente pouco ao séquito já grande de adesistas de primeira, segunda ou undécima hora.

Mesmo os meios de comunicação que se coloquem no papel de consciência crítica do governo não estão obrigados a censurar cada decisão dos dirigentes. Assim como até um relógio parado está certo duas vezes por dia, uma administração, por pior que seja, fatalmente apresentará iniciativas dignas de apoio. Isso ocorreu até com o Collor.

Mais importante, essas observações não implicam que nossa mídia seja boa ou não cometa injustiças. Pelo contrário, ela as perpetra. E com um notável viés antigovernamental. Não vi estatísticas a respeito, mas estou certo de que o número de matérias injustas publicadas contra Dilma supera o de textos anti-Serra, que, por sua vez, é maior do que o de escritos desfavoráveis a Marina. É claro que o ideal seria que estampássemos apenas reportagens inatacáveis, mas, como isso é humanamente impossível, é melhor (ou "menos pior") que a tendência dos principais órgãos de imprensa (o certo aqui seria distingui-los um a um, mas não tenho nem procuração nem espaço para fazê-lo) seja antigovernista e não puxa-saquista.

A analogia que cabe é com a das deformações profissionais. Da mesma forma que um policial que acredite sempre na palavra de todo mundo, aí incluídos os bandidos, é quase um inútil, também um jornalista que aceite todas as explicações do governo não vai muito longe. No varejo, isso causa problemas. O sujeito inocente que é interrogado pelo tira durão poderá ser indevidamente pressionado. Uma explicação correta para um problema dada por órgão oficial poderá ser editada como desculpa esfarrapada. No atacado, porém, essas injustiças pontuais são o preço a pagar por engrenagens que funcionem, isto é, por uma polícia que investigue e apure crimes e por uma imprensa que informe o cidadão. Desde que esses erros sejam cometidos honestamente, e não na tentativa de extorquir ou manipular, é o máximo que nos é dado obter.

Falta ainda ensaiar uma explicação para o fato de muitas pessoas desprovidas de más intenções não perceberem esses mecanismos, que são até meio óbvios. Já resvalei nessa questão algumas semanas atrás, quando, analisando as eleições, afirmei que nossos cérebros são verdadeiras máquinas de autoengano, que nos permitem enxergar apenas aquilo que nossas emoções autorizam. A política e o futebol são só os ramos de atividade em que o caráter erístico do pensamento é mais notável.

Assim, não chega a ser uma surpresa que o papel da imprensa seja mal compreendido. A memória do eleitor emocionalmente ligado ao PT simplesmente não armazena nem as críticas nem as injustiças feitas no passado contra o PSDB. De modo análogo, o simpatizante tucano só vê os deslizes que a mídia comete contra o seu candidato. Não é à toa que os dois lados acusam os jornais de complô. Ainda que maquinar contra os dois candidatos majoritários numa eleição em dois turnos seja uma impossibilidade aritmética, aos olhos do militante, que só registram o seu lado da história, a acusação, mais do que verossímil, é uma certeza. Bem, parafraseando Schiller, contra a neurologia lutam os próprios deuses em vão.

hélio schwartsman

Hélio Schwartsman é bacharel em filosofia, publicou 'Aquilae Titicans - O Segredo de Avicena - Uma Aventura no Afeganistão' em 2001. Escreve de terça a domingo.

 

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