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hélio schwartsman

 

07/04/2011 - 07h03

Uma defesa de Bolsonaro

Com o atraso que se faz necessário para serenar os espíritos, comento o caso envolvendo o deputado Jair Bolsonaro, que, ao invectivar simultaneamente contra negros e homossexuais, despertou a sincera ira de amplos setores da sociedade. Evidentemente, estou entre os que acham que o mandatário tem o direito de dizer o que pensa, por mais politicamente incorretas, ofensivas ou imorais que sejam suas declarações. Aliás, surpreendeu-me o número de pessoas (incluindo algumas que eu respeito) que advogou pela abertura de processos criminal e por quebra de decoro contra o legislador.

Não sou fã da imunidade parlamentar, mas, se há uma restiazinha de sentido neste instituto, ela está justamente na blindagem de congressistas em relação aos chamados crimes contra a honra. E sair-se com casuísmos do tipo "a imunidade só vale para declarações relacionadas ao exercício do mandato" é uma patacoada. Tentar distinguir entre os "momentos parlamentares" e os não parlamentares na vida de um legislador é exercício fadado ao fracasso, e não só porque eles trabalham pouco. Quando deu a entrevista que deflagrou o escândalo, o intimorato Bolsonaro estava longe da tribuna; ainda assim só havia sido procurado pela mídia porque tem assento no Congresso Nacional. Esse é um "instante deputado" ou não deputado?

Faço minha uma frase do linguista e militante esquerdsista norte-americano Noam Chomsky: "Se você acredita em liberdade de expressão, então acredita em liberdade para exprimir opiniões que você não gosta. Stálin e Hitler, por exemplo, eram ditadores favoráveis à liberdade de exprimir apenas opiniões que eles gostavam. Se você é a favor da liberdade de expressão, isso significa que você é a favor da liberdade de exprimir precisamente as opiniões que você despreza".

Com efeito, ninguém precisa de licença ou autorização para dizer o que todos querem ouvir. Ou bem o instituto da liberdade de expressão existe para abarcar casos como o de Bolsonaro, ou ele se torna um penduricalho inútil na legislação, uma palavra de ordem no máximo.

E eu receio que tenha sido isto o que aconteceu: a liberdade de expressão acabou se tornando uma "idée reçue" (ideia aceita). Achamos que ela é importante porque todos dizem que é importante, mas o raciocínio para aí. Minha intenção é usar a coluna de hoje para tentar mostrar por que devemos defender o direito de um cidadão dizer o que deseja mesmo que o conteúdo de suas declarações nos repugne.

Parte da culpa pelo marasmo em que o conceito de liberdade de expressão caiu é da turma dos direitos humanos (na qual me incluo). Sempre que precisamos justificá-la, abraçamos a solução preguiçosa de fazer referência ao artigo 19 da Declaração Universal dos Direitos do Homem, que a afirma. Podemos eventualmente avançar até os artigos 5º, IX e 220 da Constituição brasileira, ou à primeira emenda da Carta dos EUA, que também a mencionam, mas continuaremos não dizendo muito. Apenas citar as peças normativas que aludem à liberdade de expressão faz com que ela pareça um direito natural, e direitos naturais, lamento dizê-lo, são uma grande bobagem. Quer dizer, eles até podem fazer sentido para quem acredita num Papai do Céu que presenteia seus povos preferidos com tábuas de leis e garantias fundamentais, mas, se quisermos ser um bocadinho mais sofisticados do que isso, precisamos pensar direitos como regras positivas que se articulam em torno de intuições morais e princípios de organização social.

Numa simplificação grosseira, a liberdade de expressão deve constar de nossos sistemas legais porque ela satisfaz a teoria da justiça embutida em nossos cérebros e, igualmente importante, tende a tornar melhor as sociedades em que vivemos.

Em "On Liberty", um primoroso opúsculo de 1859 que anda lamentavelmente meio esquecido, o filósofo John Stuart Mill (1806-1873) diz quase tudo o que é preciso dizer sobre o assunto. Como todo bom liberal inglês, ele alerta para as injustiças que um governo pode cometer contra o indivíduo, mas lembra que o Estado não é o único perigo. A sociedade, através das "opiniões e sentimentos prevalecentes", pode converter-se num poder ainda mais opressivo que o do Estado. É o que Mill chama de "tirania da maioria". E a única forma de contrapor-se a ela (e às outras potenciais ditaduras que rondam à espreita) é conferir ao cidadão liberdades em seu grau superlativo. "Na parte que concene apenas a ele mesmo [o indivíduo], à sua independência, o direito é absoluto. Sobre si mesmo, o seu corpo e sua mente, o indivíduo é soberano".

O autor detalha um pouco mais o quadro, destacando a liberdade de pensamento (que, para ser efetiva precisa incluir as liberdades de expressão e de imprensa), a liberdade de buscar o que quer que apeteça ao sujeito, ainda que isso pareça imoral aos olhos de muitos, e a liberdade de reunião, isto é, de juntar-se a outras pessoas.

Mill, é claro, não era tonto. Ele logo percebeu que uma liberdade assim forte fatalmente entraria em conflito com outros direitos que devem ser preservados. Impôs, portanto, um único limite a essa liberdade: o princípio do dano. Para o filósofo, "a única situação em que o poder pode justificadamente ser exercido contra a vontade de qualquer membro de uma comunidade civilizada é para prevenir dano a outros".

Definir o que seja dano é evidentemente problemático. Mill, porém, tinha em mente perigos físicos muito concretos e não meras indignações e chiliques por parte de gente que se ofende com facilidade. Vale lembrar que o autor também abre uma exceção para que possamos impor nossa autoridade sobre crianças e pessoas privadas de juízo, mas apenas enquanto estas não puderem ser donas de seus próprios narizes.

As liberdades de Mill, notadamente a de pensamento, estão na base de muitas das instituições que definem a modernidade. Um exemplo é a liberdade acadêmica e, com ela, o desenvolvimento técnico e científico que hoje vivemos. Até podemos conceber que ciência seja produzida num contexto de censura a ideias, mas parece forçoso admitir que seu escopo seria menor e seu ritmo, mais lento.

De modo análogo, vários autores ligam a liberdade de expressão à própria noção de democracia. A razão mais óbvia é que, pelo menos nos livros-texto, um dos requisitos para o bom funcionamento da democracia é a existência de um eleitorado bem informado.

Já quase recorrendo à teoria dos jogos é possível também afirmar que a liberdade de expressão, ao assegurar que todos os temas possam ser discutidos e sob todas as perspectivas, ajuda a sociedade a encontrar o balanço entre mudança e estabilidade. Tome-se o caso da moral. Um debate aberto permite que se proceda ao ajuste fino entre a saudável contestação e o necessário consenso. Como eu escrevi neste mesmo espaço três semanas atrás: "A figura do 'dissenter', embora possa produzir fricções de alto custo emocional para todas as partes envolvidas, também costuma levar a maioria a reformular seus argumentos (ou projetos), de modo a responder a objeções percebidas como relevantes. Essa dinâmica fica particularmente clara em situações como a de tribunais colegiados e comissões legislativas. O 'do contra' aqui, ainda que possa provocar brigas homéricas, é um elemento fundamental para melhorar a qualidade do trabalho".

E vale lembrar que, para cada Bolsonaro ecoando ideias racistas e homofóbicas, existe também um sujeito progressista defendendo pontos de vista libertários e avanços sociais. Na média, quando todos podem falar livremente, é a sociedade que sai ganhando.

PS - Depois de uma defesa tão veemente do direito do deputado Jair Bolsonaro de dizer o que pensa, só me resta dizer o que penso dele: sujeitinho detestável!

hélio schwartsman

Hélio Schwartsman é bacharel em filosofia, publicou 'Aquilae Titicans - O Segredo de Avicena - Uma Aventura no Afeganistão' em 2001. Escreve de terça a domingo.

 

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