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hélio schwartsman

 

28/04/2011 - 07h01

O casamento do século

Não vou remar contra a maré. Comento hoje o "casamento do século", mas prometo que não vou dizer uma palavra sobre o vestido de Kate Middleton nem traçar paralelos com a princesa Diana. Na verdade, vou advogar pela abolição da monarquia, mas comecemos pelo começo.

Por que o enlace entre um oficial da Royal Air Force e uma historiadora da arte, com uma audiência televisiva esperada de 2 bilhões de terráqueos, desperta tamanha atenção? A resposta é até fácil. O noivo, William de Gales, é o segundo na linha de sucessão da coroa britânica. Isso significa que ele muito provavelmente será o monarca do Reino Unido, e chefe de Estado de mais 15 Estados independentes, que incluem o Canadá, a Austrália e a Nova Zelândia. É verdade que os poderes de fato do soberano são para lá de limitados, mas, ainda assim, rei é rei e não há dúvida de que é a realeza que diferencia este casamento das dezenas de uniões entre celebridades que se celebram todos os anos, acendendo muito menos holofotes.

A pergunta relevante, então, é: por que temos esse lance com reis e rainhas? A resposta não é trivial. Desde que o homem desenvolveu a agricultura, cerca de dez mil anos atrás, os bandos relativamente igualitários de caçadores-coletores foram dando lugar a sociedades maiores e mais complexas, que, se não exigiam, ao menos ofereciam espaço para uma autoridade central. Nasciam assim os primeiros reis e, com eles, as primeiras tiranias.

Assumir o poder é apenas a primeira dificuldade na vida de uma dinastia. Uma vez lá, é preciso manter-se no comando. O método mais eficiente é contar com um bom exército, mas outros truques também são bem-vindos. Um particularmente útil é convencer os súditos de que eles devem, além de temer, amar e respeitar o soberano. Pode parecer contraditório, mas algumas fragilidades da cognição humana favorecem o candidato a déspota.

Como mostra o trabalho do psicólogo Paul Bloom, da Universidade Yale, nós, humanos, temos uma visão essencialista do mundo, ou seja, estamos sempre à procura da natureza oculta das coisas. Esse hábito, exótico mesmo para os padrões dos mamíferos antropoides, tem uma série de consequências, algumas positivas, outras, negativas.

Comecemos pelas boas. Essa obsessão para com substâncias e quididades nos leva a ser observadores detalhistas, que tentam ler em pistas externas a verdadeira essência dos objetos --e isso tende a favorecer a sobrevivência. Se você for um botânico superficial, acabará levando a planta venenosa em vez do remédio para casa. Em algum grau, o essencialismo é real. O próprio sucesso das ciências indica que existem de fato realidades não evidentes a ser descobertas no mundo. Outros subprodutos interessantes incluem nosso gosto pela filosofia, pela ficção e a filatelia (ou qualquer outro colecionismo).

Do lado menos brilhante do essencialismo, temos a obstinada tendência de enxergar propriedades invisíveis mesmo onde elas não existem. É por acreditar que diferenças superficiais devem refletir também diferenças essenciais que temos fenômenos como o racismo e demais formas de discriminação moralmente condenáveis. Desenvolvemos também uma tendência a crendices sem paralelo em outras espécies animais, do que dão prova a astrologia, a homeopatia e a religião. Quem apostou que, na era da ciência, a humanidade finalmente superaria esse gênero de superstição quebrou a cara.

Voltando à realeza, ela soube explorar nossa quedinha por naturezas secretas. Antes de mais nada, monarcas tiveram o cuidado de informar seus súditos de que se sentavam no trono e empunhavam o cetro por direito divino. Isto é, depois do Altíssimo, eram eles que mandavam e ai de quem tentasse contestar. Evidentemente, tudo é um jogo de mão dupla. Se faz parte da essência do soberano comandar, essa virtude precisa exibir também algumas manifestações externas. É assim que surgem metáforas como a do "sangue azul" e, mais concretamente, leis suntuárias que reservavam trajes exclusivos para reis, seus familiares e outros membros da nobreza. Na Roma imperial, por exemplo, só o imperador podia usar a toga púrpura. Penalidades para quem descumprisse a norma variavam conforme o freguês (e as necessidades do vendedor). Iam desde multa até a morte, passando pelo confisco das propriedades.

E há mais. Como mostra Michel Foucault em "As palavras e as Coisas", pelo menos até o finzinho do século 16 era perfeitamente razoável, senão obrigatório, acreditar em magia: fazer ciência nada mais era do que descobrir analogias absconsas entre seres. Assim, era perfeitamente natural que o corpo do rei possuísse propriedades místicas.

Ninguém melhor do que Shakespeare, um autor da transição do século 16 para o 17, para apresentá-las. Na terceira cena do quarto ato de "Macbeth", quando o nobre Macduff e Malcolm, o filho do rei assassinado, que estava exilado na Inglaterra, discutem os contrastes entre a monarquia boa (a inglesa) e a má (a escocesa, encabeçada por Macbeth), o herdeiro legítimo do trono escocês diz a respeito de seu anfitrião: "Miraculoso feito realiza este bom rei, já presenciado várias vezes por mim, desde que me acho no reino da Inglaterra. De que modo consegue o céu mover, só ele sabe. Mas pessoas tocadas de moléstias estranhas, cheias de úlceras, tristíssimo espetáculo a todos, desespero da medicina, sãs ele tem posto com lhes pôr ao pescoço uma áurea estampa, ao tempo em que murmura santas preces. Dizem também que aos reis seus sucessores transmitirá esse poder bendito de curas realizar. Mas além dessa virtude estranha, o dom possui celeste da profecia, sobre lhe cercarem o trono várias bênçãos que o declaram cheio de graças".

Utilizar o rei como terapia não era um hábito exclusivamente inglês. Pelo que sabemos hoje sobre o efeito placebo, é razoável supor que o toque monárquico funcionasse para algumas enfermidades. Mas, como os médicos de então não sabiam diferenciar entre moléstias infecciosas e psicossomáticas, o mais provável é que a prática constituísse uma ameaça à saúde do rei.

Os efeitos do essencialismo não acabam aqui. Pelo menos desde Homero, reis souberam colocar-se nos melhores papéis ficcionais. Virtualmente todos os heróis da Ilíada são soberanos ou herdeiros de algum território. O mesmo vale para Gilgamesh, os reis Saul, David e Salomão, o ciclo arturiano, Boewulf e até as histórias infantis, povoadas por príncipes e princesas. Não parece exagero afirmar que, em nossas cabeças, as noções de herói e rei se misturam. É claro que, de vez em quando, surge um monarca que pode ser considerado do mal, como Macbeth, mas eles são em geral punidos no curso da ação e a justiça poética termina bem servida.

Após quase 3.000 de doutrinação política e literária, que se valem de nossas mais vexatórias fraquezas neurológicas, seria uma surpresa se não víssemos a monarquia, em especial bodas reais, com a mais favorável das inclinações. O problema é que, com o curso do tempo e o progresso da civilização, o princípio mesmo de monarquia se tornou moralmente injustificável. Como defender que um ser humano tenha privilégios sociais e legais em virtude não de seu esforço (ou, se admitirmos o direito de herança, do de seus pais), mas apenas de seu nascimento? É difícil até imaginar uma ideia mais antidemocrática do que essa.

É incrível que, nesses tempos de politicamente correto, nos quais discursos que apenas contemplem a possibilidade de haver diferenças naturais entre raças, gêneros e grupos sociais são severamente patrulhados, 2 bilhões de humanos ainda celebrem e se encantem com a mais absurda das dicotomias jamais criadas pelo homem: a divisão do mundo em soberanos e súditos. Daí que o inexpressivo movimento republicano inglês tem toda minha simpatia.

hélio schwartsman

Hélio Schwartsman é bacharel em filosofia, publicou 'Aquilae Titicans - O Segredo de Avicena - Uma Aventura no Afeganistão' em 2001. Escreve de terça a domingo.

 

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