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hélio schwartsman

 

05/05/2011 - 07h00

O fim de Bin Laden

Quanto mais leio sobre as circunstâncias da morte de Osama bin Laden, menos gosto do conjunto. Até acredito que essa não poderia ter sido uma operação 100% de acordo com o direito internacional. Pedir licença aos paquistaneses, por exemplo, como exigem a boa educação e as leis, teria sido estúpido. É difícil acreditar que o líder terrorista tenha vivido por mais de cinco anos num espalhafatoso complexo ao lado de uma academia militar numa cidade a apenas 50 km da capital sem o beneplácito de gente importante em Islamabad.

A invasão do espaço aéreo paquistanês desponta, porém, como o menor dos pecados da investida norte-americana. À medida que os dias passam, vão surgindo também suspeitas de que parte das informações que levaram à localização de Bin Laden foram obtidas mediante tortura e, mais importante, ninguém em Washington deu ainda uma explicação razoável para o fato de o homem ter sido morto em vez de capturado e julgado. Custa crer que os Seals, uma das unidades militares mais bem treinadas e equipadas do mundo, não tenham sido capazes de fazer prisioneiro um franzino paciente renal crônico que se encontrava desarmado no momento do ataque. Que resistência sobre-humana ele pode ter oferecido? Convidado a vestir as algemas ele disse "não"?

Não sou dado a teorias conspiratórias. De um modo geral, sempre que ouço a palavra "complô", fico tentado a chamar um psiquiatra. Mas parece difícil aqui afastar a hipótese de que os Seals foram despachados por Barack Obama com a missão de matar Osama bin Laden. O "cui prodest" (a quem beneficia) não poderia ser mais eloquente. A aprovação ao presidente norte-americano, que tentará a reeleição no ano que vem, deu um salto de 11% percentuais, batendo em 57%, contra 46% no mês passado, de acordo com levantamento do Pew Research Center divulgado ontem. Ainda mais significativo, os analistas são mais ou menos unânimes em afirmar que o efeito na popularidade tende a ser duradouro, porque resolve um problema de imagem de Obama. Ele, a exemplo de outros mandatários do Partido Democrata, era visto como um líder pouco decidido em questões de política externa, o que poderia representar um risco para a segurança dos EUA. Ser o responsável pela morte do arquiteto do 11 de Setembro muda tudo.

Um espírito de porco poderia argumentar que o presidente colheria mais ou menos o mesmo benefício se Bin Laden tivesse sido capturado. Na verdade, poderia até ganhar mais, se o líder terrorista fosse julgado e condenado à morte umas duas ou três semanas antes da eleição. Pode ser, mas essa é uma aposta arriscada. Julgá-lo publicamente (e não em cortes militares secretas) envolve muitas incógnitas. Os EUA teriam, por exemplo, de colocar à disposição da defesa informações que poderiam comprometer seu aparato de segurança no exterior. Um tribunal isento não aceitaria provas obtidas ilicitamente, o que inclui informações arrancadas em sessões de tortura. Ainda pior, Bin Laden teria um palco para falar dos bons e velhos tempos em que ele recebeu apoio da CIA para lutar contra os soviéticos no Afeganistão. Não é algo que afete Obama diretamente, mas não podemos esquecer que também estão em jogo aqui os interesses da comunidade de segurança norte-americana.

Deixemos, porém, as análises políticas para os especialistas e nos concentremos nos paradoxos das sociedades ditas civilizadas. Poucas mortes foram tão celebradas quanto a de Bin Laden. No discurso em que anunciou a operação, Obama foi peremptório: "justiça foi feita". Os tabloides norte-americanos foram ainda menos circunspectos. O "Daily News", por exemplo, manchetou: "Apodreça no inferno".

Aliados tradicionais dos EUA foram na mesma toada do presidente. Até o normalmente comedido Conselho de Segurança das Nações Unidas classificou a ação como "avanço crucial". Nem o Itamaraty, que até há pouco flertava com Ahmadinejad e outros radicais islâmicos, escapou. O chanceler Antônio Patriota considerou positiva a morte do líder terrorista.

Exceto pelos partidários de Bin Laden, o consenso parece ser o de que ele mereceu o seu destino. Mas o que significa "merecer"?

Para tentar responder a essa pergunta, precisamos distinguir duas concepções de Direito das quais derivam os mais diferentes "blends" filosóficos.

A primeira e mais antiga é conhecida como lei de talião. É o famoso "olho por olho, dente por dente" do Antigo Testamento. Tecnicamente, leva o nome de justiça retributiva. Não difere muito da vingança. Aplica-se a pena porque o réu a "merece". Essa noção de merecimento, é claro, só faz sentido quando dispomos de um Deus ou alguma outra entidade metafísica que sustente uma ideia de Justiça perigosamente platônica.

O conceito de justiça retributiva começou a ser questionado no século 18, especialmente por Cesare Beccaria (1738-1794) e Jeremy Bentham (1748-1832). A partir do século 19 foi ganhando força a noção utilitarista de que a pena tem como objetivo, não a punição pela punição, mas a manutenção da ordem pública. O criminoso deve sofrer uma sanção para não voltar a delinquir e também para desencorajar outras pessoas a imitá-lo. Daí a necessidade de julgamentos públicos e de algum modo ritualizados --o famoso "due process of law" (devido processo legal). A pena já não precisa ser tão "cruel" como a ofensa que pretende coibir. É a certeza da punição e não a dureza de castigo que serve de freio à criminalidade, apregoava Beccaria.

Hoje é difícil sustentar, no mundo civilizado, a concepção puramente retributiva. Por razões que não cabe aqui comentar, os sistemas legais do Ocidente foram deixando de fazer referência a Deus e procuraram fundar-se como positivos. A notável exceção são os EUA, o único país industrializado que de fato aplica a pena de morte.

Eu, como um bom liberal, fico tentado a adotar um sistema puramente utilitarista, baseado unicamente na razão. Só iriam para a cadeia pessoas que representassem uma ameaça física à sociedade. Todos os demais sofreriam punições pecuniárias ou de prestação de serviços. Até aqui, muitos juristas de carne e osso me acompanham. Mas, se vamos seguir a trilha verdadeiramente racionalista, precisamos ir além. Mesmo um ditador genocida, como Adolf Hitler ou Saddam Hussein, teriam de ser poupados da forca e até mesmo da cadeia. É que, do ponto de vista utilitário, não ganhamos nada ao executá-los ou prendê-los, visto que, uma vez depostos, não teriam mais os meios materiais para voltar a cometer os crimes de que os acusamos. Até como exemplo sua punição tende a ter alcance limitado. Nenhum candidato a déspota deixa de converter-se num tirano por temor ao castigo.

E esse não é o único problema. Se levarmos a lógica utilitarista ao extremo, precisaremos considerar "válido" conter a ação de criminosos ameaçando seus familiares, por exemplo. Fica difícil defender essas coisas.

Gostemos ou não, o fato é que a biologia dotou cada um de nós de um senso de justiça, que precisa ser aplacado. E esse senso jurídico comum caminha perigosamente perto da boa e velha vingança. Um direito positivo utilitarista inteiramente divorciado de nossos impulsos naturais tende a ser rejeitado pela população, como uma Justiça que não faz justiça. E isso, evidentemente, o torna inútil como sistema de prevenção de delitos.

Por mais liberais que sejamos, precisamos fazer algumas concessões à natureza humana, que, especialmente em casos emblemáticos como o de Osama bin Laden, clama pelo "olho por olho". Cuidado, não estou aqui justificando o que parece ser a decisão de Obama de mandar matar o terrorista saudita. Fazer concessões não implica capitular. Apesar de o senso jurídico comum flertar permanentemente com a lei de talião, ele pode, dentro de certos limites, ser modificado pela cultura. Menos de 200 anos atrás, a pena cabível para um ladrão de cavalos no velho oeste americano era a forca --e ninguém discutia. Hoje, acho que nem os texanos vão tão longe. Duvido que roubar um cavalo por lá renda mais do que 30 anos.

Brincadeiras à parte, receio que Barack Obama, que foi professor de Direito Constitucional na prestigiosa Universidade de Chicago, embora tenha dado um passo importante para a reeleição, desperdiçou uma excelente oportunidade de civilizar um pouco mais os EUA e o mundo. Acho que, no caso específico de Bin Laden, a prisão e o julgamento, apesar de todas as incertezas, representariam melhor serviço à Justiça do que a morte em circunstâncias pouco convincentes. Nunca é demais lembrar que a diferença fundamental entre o poder do Estado e o do gângster ou terrorista é que o primeiro é legitimado e limitado pela lei, enquanto o segundo se funda apenas na vontade do chefe. Ao que tudo indica, estamos diante da versão obamista do "esqueçam o que escrevi".

hélio schwartsman

Hélio Schwartsman é bacharel em filosofia, publicou 'Aquilae Titicans - O Segredo de Avicena - Uma Aventura no Afeganistão' em 2001. Escreve de terça a domingo.

 

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