Henrique Gomes

Físico, é doutor em gravidade quântica e doutorando em filosofia na Universidade Cambridge.

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Não nos livraremos da Covid, mas doença deve ficar menos letal com o tempo

Desafio do Brasil é acelerar vacinação antes que a variante delta chegue com força total

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No momento, há uma corrida entre a vacinação e a propagação da variante delta de Sars-CoV-2. A variante não é mais letal que outras, mas é consideravelmente mais transmissível: de duas a três vezes mais que a variante original de Wuhan e cerca de 50% mais que a variante de Kent, ou alfa, que até agora mantinha o posto de mais transmissível.

Do lado negativo, a delta tem maior escape imunológico que a alfa: consegue infectar maior número de pessoas que já havia adquirido imunidade parcial (quer por infecção prévia, quer por vacinação parcial). Do lado positivo, ela causa doença menos severa na população vacinada que a variante alfa: a eficácia das vacinas contra hospitalização e morte é ainda mais excepcional contra a delta que contra a alfa.

De qualquer forma, a transmissibilidade dessa variante é tão alta que é praticamente certo que ela varrerá quase a totalidade de uma população que atingir. A chamada imunidade de rebanho —a porcentagem da população imune que inibiria completamente a propagação do vírus— é altíssima para a delta.

No Reino Unido, por exemplo, se estima que cerca de 90% da população adulta já carregue anticorpos e, mesmo assim, o país registra aumento vertiginoso de casos. Por isso, é seguro dizer que não há mais a menor possibilidade de extinguirmos o vírus: o gênio está completamente fora da lâmpada.

Por esse motivo, o Reino Unido anunciou na segunda-feira (12) que vai suspender na próxima semana todas as restrições restantes (que ainda existem: estádios de futebol lotados eram exceção). O governo entende que ainda haverá outra onda grande, mas também que a relação entre casos e hospitalizações é agora consideravelmente menor do que foi nas últimas ondas: por exemplo, na onda de janeiro na Inglaterra, cerca de 1 em cada 10 infecções se traduzia em uma internação hospitalar dez dias depois.

Agora, esse número parece estar entre 1 em 40 e 1 em 50. Ou seja, uma porção quatro ou cinco vezes menor vai parar no hospital, e menos ainda morrem. O efeito das vacinas é quase milagroso, e não é fácil readaptarmos nossas intuições para esta nova fase da batalha contra o terrível Sars-CoV-2.

Mais adiante, daqui a muitos meses, mesmo quando os anticorpos neutralizantes no sangue diminuírem para níveis baixos ou forem incapazes de se ligar efetivamente à nova cepa viral, o hospedeiro ainda estará protegido pelas células B, de memória, que produzem anticorpos, e pela imunidade celular (células T).

Esta última proteção é muito mais "holística", tendo como alvos simultaneamente várias características do vírus (as vacinas são policlonais; células T CD8+ e células T CD4+ cobrem 52 e 23 epítopos, respectivamente, em toda a proteína da espícula): um escape total certamente requereria tal modificação no vírus que o tornaria inoperante.

Mesmo assim, a longo prazo, é bem possível que uma nova variante de sucesso surgirá e se espalhará pelo mundo. Isso estaria em linha com a trajetória de outros vírus respiratórios sazonais endêmicos que nos infectam regularmente —cerca de 200, incluindo a gripe sazonal (influenza A e B). Lembre-se que, quando a influenza passou a infectar humanos, sua letalidade em uma população imunologicamente ingênua era muito maior que a de Sars-CoV-2.

Como explica o professor François Balloux, do University College London, conforme a população adquire imunidade, por meio de infecção e vacina, a expectativa é que a maior vantagem evolutiva seja adquirida contornando a imunidade prévia do hospedeiro e alertando menos o nosso sistema imunológico —assim como acontece com os outros vírus sazonais. A evolução da delta pode ser interpretada como um primeiro pequeno passo nessa direção.

A má notícia então é que não nos livraremos do Sars-CoV-2. A boa notícia é que, em linha com os outros vírus respiratórios sazonais endêmicos que nos infectam regularmente, espera-se que sua letalidade diminua dramaticamente uma vez que se torne endêmico.

Há muitos que ainda assim temem um retorno ao normal com o receio de que isso implicará um número incontável de casos de Covid longa. Apesar de possivelmente séria, os melhores estudos mostram que a severidade dos sintomas a longo prazo seguem a severidade dos sintomas da infecção original, de forma qualitativamente similar ao que ocorre com outros vírus. Os sintomas mais leves de uma população (parcialmente) imunizada devem levar a menos casos sérios de Covid longa.

Para aqueles que se preocupam com a possibilidade de sintomas a longo prazo mesmo com uma infecção original leve, é preciso levar em conta efeitos psicossomáticos, como os efeitos placebo ou nocebo, que não desaparecerão.

A maioria das pesquisas nesse sentido associa a casos leves sintomas como depressão, dor de cabeça e fadiga, mas esse tipo de sintoma está em linha com os efeitos placebo e nocebo: por exemplo, as pessoas inscritas no braço de controle do ensaio da vacina da Pfizer relataram fadiga (33%) e dor de cabeça (34%), apesar de não terem recebido a vacina.

Todos esses estudos sobre Covid longa, por mais bem-elaborados que sejam, não podem controlar o fato de que as pessoas sabem que tiveram Covid. Mesmo que os efeitos placebo ou nocebo possam ter um forte efeito na saúde e no bem-estar das pessoas, a solução aqui me parece estar no âmbito de comunicação dos orgãos de saúde com a população em geral e não necessariamente no de controle epidêmico.

Essas são as minhas considerações para o futuro. No presente, o Brasil provavelmente ainda enfrentará uma onda terrível quando a delta chegar com força total. A única questão é qual cobertura teremos alcançado com a vacinação.

Esta é uma corrida que não podemos perder.

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