Igor Gielow

Repórter especial, foi diretor da Sucursal de Brasília da Folha. É autor de “Ariana”.

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Igor Gielow

Com riscos nucleares crescentes, EUA poderão facilitar emprego da bomba

Crédito: Cogumelo da explosão da segunda bomba atômica usada em guerra pelos EUA, contra Nagasaki (Japão), em 1945
Cogumelo da explosão da segunda bomba atômica empregada pelos EUA, contra Nagasaki em 1945

O prestigioso grupo norte-americano que edita o "Boletim dos Cientistas Atômicos" divulgará, nos próximos dias, se houve em 2017 mudança na posição dos ponteiros do Relógio do Juízo Final, ou do Apocalipse. Marcando nosso encontro com o fim do mundo, representado pela meia-noite, o instrumento mede o risco desde 1947.

Até 2007, apenas a probabilidade de guerra nuclear estava representada. Dali em diante, a ameaça do aquecimento global atualizou suas definições. Em janeiro de 2017, o ponteiro foi colocado a dois minutos e meio da meia-noite, segundo mais perigoso nível de sua história.

Parece uma inevitabilidade uma nova aproximação neste ano, embora o "Boletim" insista que indivíduos são menos importantes do que contextos nas suas formulações. Isso dito, o ano de 2017 trouxe uma assustadora normalidade à discussão acerca do uso de armas nucleares.

Enquanto a imprensa mundial debate as fofocas do livro sobre a Casa Branca caótica sob Donald Trump ou sua diatribe semanal contra alguma minoria, os EUA preparam a primeira revisão de sua política nuclear em oito anos, prevista para o fim deste mês.

Pelo que transpareceu até aqui, a ideia do governo Trump é flexibilizar a ideia de emprego de armamento atômico. Como? Entre outras coisas, desenvolvendo ogivas menos poderosas para serem colocadas em seus mísseis intercontinentais lançados por submarinos, dando a elas o que o jargão chama de caráter tático.

Ou seja, para serem usadas pontualmente em batalha, destruindo tropas ou bases, em oposição às armas estratégicas que obliteram cidades inteiras visando encerrar o conflito.

É uma ideia de jerico, com a devida vênia aos asininos. Como notou em entrevistas sobre o tema Jon Wolfstahl, que assessorou o governo Barack Obama em assuntos de não-proliferação, para começar a medida é ineficaz para o papel dissuasório inerente à armas nucleares.

Isso porque submarinos são feitos para garantir ao inimigo que, em caso de um ataque a um país, o agressor será alvo de fogo retaliatório. Logo, eles têm de ser usados apenas num segundo ataque, com força total. Disparar um míssil para uso tático, menos potente, apenas revelaria ao adversário a posição do barco.

Mas o maior problema ainda é outro. A mensagem passada é a de que há armas nucleares mais empregáveis do que outras, o que aumenta a desconfiança de lado a lado. E antes que os críticos de Trump venham acusá-lo de buscar a meia-noite do Relógio do Juízo Final, é bom lembrar que ele não está sozinho no jogo.

Desde pelo menos 2009 a Rússia de Vladimir Putin vem trabalhando em mísseis de cruzeiro que violam, em tese, um acordo central para o fim da Guerra Fria. Ele até tem justificativas, já que o tratado na prática desmantelou muito mais armas russas que americanas por eximir modelos navais que os soviéticos não tinham, mas o fato é que o mundo está longe do sonho da famosa ONG americana Nuclear Zero.

A doutrina militar oficial russa também prevê desde o ano 2000 o uso de armas nucleares em caso de estar sob um ataque convencional que ameaças sua integridade -um recado às forças da Otan (aliança militar liderada pelos EUA) na sua fronteira oeste. Os EUA e seus aliados, por sua vez, deixam claro que o chamado primeiro uso da bomba é uma opção que não descartam.

E temos a Coreia do Norte, que leva seus vizinhos a pensar na bomba enquanto instiga os instintos mais primitivos de Trump, como diria Roberto Jefferson sobre José Dirceu. Num recém-publicado livro de ficção, escrito antes das escaramuças entre o norte-coreano e o americano, o ocupante da Casa Branca chega a dar a ordem para um ataque contra Pyongyang e seus aliados chineses. "Matem o presidente" não é um bom thriller, mas é um acurado exercício de futurologia.

Em outra obra, as memórias "Máquina do Juízo Final" (2017), Daniel Ellsberg traz uma visão pessimista sobre o manejo do poderio nuclear americano. Aos 86 anos, Ellsberg é famoso por ter vazado em 1971 ao "The Washington Post" os "Papéis do Pentágono", conjunto de documentos secretos sobre a guerra do Vietnã que causou uma crise -retratada agora num filme de Steven Spielberg, "The Post".

Ele teve longa carreira entre a corporação Rand, centro de estudos muito próximo ao governo americano, e o Pentágono. Nos anos 1950, era colega do americano Herman Khan, teórico nuclear e um dos inspiradores do personagem-título de "Doutor Fantástico", excepcional sátira sobre o equilíbrio atômico da Guerra Fria filmada por Stanley Kubrick em 1964.

Ellsberg conta não menos de 25 vezes em que presidentes americanos estiveram perto de, por imperícia ou vontade própria, usar a bomba. Trump pode parecer mais desequilibrado que seus antecessores, mas está longe de ser um ponto fora da curva nesse quesito.

O mundo parece próximo da possibilidade de algo dar errado e ver em uso as "armas criadas para nunca serem usadas" (não mencione esse clichê ocidental aos japoneses). Por anos ouvimos que isso não aconteceria nunca, que a "destruição mutuamente assegurada" era um princípio. O filme não é novo. A Primeira Guerra Mundial era a "guerra para acabar com todas as guerras" -só para legar a aniquilação de toda uma geração europeia, o comunismo, o fascismo e a sua continuação ainda mais mortífera em 1939.

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