Jornalista, foi correspondente da Folha em Moscou e em Pequim. Na coluna, fala sobre relações internacionais, com atenção especial ao Oriente Médio. Escreve às segundas, a cada duas semanas.
Trump e o resgate da ideia de Yeltsin
Domingo moscovita glacial. O calendário apontava 8 de dezembro de 1991. O império soviético se esboroava, em velocidade estonteante. Em um canto de Belarus, então região controlada pelo Kremlin, o líder russo Boris Yeltsin emergiu de reunião com anfitriões e ucranianos para anunciar uma morte esperada: a da URSS, formalmente criada em 1922.
À época, eu morava em Moscou, como correspondente da Folha, e acompanhava, há exatos 25 anos, o abandonar de cena de um dos personagens mais importantes do século 20. Surgiu após a Revolução Russa, de 1917, embalou sonhos dos que acreditavam no chamado "socialismo real" e amedrontou, com a decolagem nas primeiras décadas, os inimigos ideológicos.
Mas a URSS terminou de forma melancólica, mergulhada na mais abissal crise econômica desde os tempos trágicos da Segunda Guerra. Festejado no Ocidente por dissolver, com reformas, a Guerra Fria, Mikhail Gorbatchev esgotou seus dias no Kremlin isolado, com a aura de fracasso no plano doméstico.
O calvário de Gorbatchev aplainou o caminho para a ascensão de um líder regional, Boris Yeltsin, presidente da Rússia, a maior das 15 repúblicas a formar, por décadas, o país denominado União Soviética.
Na era terminal do império, Gorbatchev e Yeltsin travaram duelo pelo poder. O líder russo acusava o pai da glasnost de retardar reformas, prometia "terapias de choque" e conquistava apoio popular, resgatando o velho nacionalismo russo, a fim de golpear a ideia de uma sociedade moldada na desacreditada cartilha soviética.
Para Yeltsin, desmontar a URSS significava destituir Gorbatchev, seu inimigo figadal, de base de poder. Os ieltsinistas avaliaram ainda a inevitabilidade do fim do império, carcomido por separatismos de rincões da URSS como Lituânia, Azerbaijão ou Geórgia.
Mais um elemento para o cálculo de Yeltsin: sem o fardo de controlar 14 repúblicas da periferia, como Ucrânia ou Cazaquistão, o governo russo pós-soviético poderia se concentrar na desafiadora tarefa de tirar sua economia do atoleiro.
A 8 de dezembro de 1991, Yeltsin jogou a pá de cal na URSS. Gorbatchev resistiu, até renunciar, a 25 de dezembro.
Yeltsin, antes do anúncio do acordo com ucranianos e bielorrussos, telefonou ao presidente dos EUA, George Bush (pai). Desejava dar a notícia em primeira mão. Ao concretizar um sonho histórico de Washington, o sumiço da URSS, o presidente russo imaginava receber valiosa ajuda norte-americana para resgatar a economia de seu país.
Um novo "Plano Marshall" jamais aportou. Prevalece em Washington a percepção da Rússia mais como ameaça do que eventual parceiro.
Donald Trump, na campanha, prometeu mudar a abordagem e se aproximar de Vladimir Putin. Resta saber se a proposta trumpiana é fanfarronice de campanha ou visão estratégica, para diminuir a alta tensão entre Washington e Moscou.
Vinte cinco anos após o fim da URSS, a desconfiança ainda predomina entre EUA e Rússia. Seria positivo, para a estabilidade global, a construção de um modus vivendi a enterrar as cicatrizes da Guerra Fria.
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