É escritor. Foi selecionado em 2012 pela revista britânica "Granta" como um dos 20 romancistas brasileiros mais promissores com menos de 40 anos.
Turismo capilar
Nos últimos anos, uma rotina de viagens cada vez mais longas fez com que eu passasse a cortar o cabelo sempre fora do Brasil. Abandonei a estável relação que tive com barbeiros de nomes como Péricles e Kléber para aventurar-me na roleta da tesoura desconhecida. Como certa vez escreveu Alan Pauls, "cada salão que não se conhece e no qual se aventura é um perigo e uma esperança, uma promessa e uma armadilha". Destaco aqui alguns relatos desse constante flerte com a desaparição.
Madri
No boêmio bairro de Malasaña, fica a Corta Cabeza. Descendo pela Corredera Baja de San Pablo, depois de um lauto almoço e alguns mojitos, vejo a fachada em estilo industrial e decido entrar. Sou sempre atravessado pela decisão de cortar o cabelo na viagem de forma imperiosa, como se vivesse um daqueles raros momentos de iluminação. A certeza que acompanha cada passo. Eles tinham horário, era o meio de uma tarde calorenta de terça-feira.
Quem lavou a minha cabeça foi uma bela travesti filipina com 1,80 m e mãos firmes. Meditar de olhos fechados enquanto um desconhecido entrelaça os dedos pelos seus cabelos molhados com água quente e xampu é um dos grandes prazeres da vida, inclusive superior à toalha morna que antecipa o toque da lâmina no rosto. Meu barbeiro foi um anão. Quando sentei na poltrona de couro negro, seu rosto ficou exatamente na altura da minha cabeça. Atmosfera almodovariana à parte, foi o melhor repicado que tive em anos. A Corta Cabeza diz em seu site (cortacabeza.com): "Somos fabricantes de beleza". Digamos que, em mim, eles tentaram com bravura.
Berlim
O Bernardo Carvalho já escreveu sobre ele, mas creio que o conheci primeiro. Trata-se do barbeiro comunista de Neuköln, cujo negócio tem como símbolo a foice e a tesoura no lugar no martelo. O lugar fica no coração do bairro de imigrantes turcos e árabes, centro do aparentemente inesgotável debate sobre gentrificação que domina a cidade. É um salão com apenas uma cadeira, paredes desbotadas e quadros "naïf" francamente horríveis pendurados na parede. Quando perguntei em inglês se ele tinha horário, me olhou com má vontade e disse: "Volte às seis da tarde. E lave o cabelo!".
Três horas depois, lá eu estava de novo, sentado com um lençol branco sobre o colo ouvindo um disco de rock industrial. O homem, um tipo de 45 anos, camiseta rasgada e cabelos esvoaçados, se desentendeu com o cortador elétrico e jogou-o no chão. Gritou com a assistente, que, desconfio, também era sua mulher. Chutou um balde de lixo no cachorro que dormia esparramado num canto. O cachorro latiu. Como eu não falo alemão, sorri em desespero. Depois, o homem monologou contra Berlim, a Alemanha, os turistas, os preços dos aluguéis e o aburguesamento do bairro enquanto gentrificava minhas madeixas com um corte à la Playmobil. Conversamos sobre música e arte contemporânea. Escrevendo este texto, descubro em obituário do jornal "Tagesspiegel" que ele morreu em agosto deste ano. Enfartou com a tesoura na mão.
Buenos Aires
O Rojo é o salão hipster quase-fora-de-moda da cidade, onde estrelas do rock e "wannabes" em geral cuidam de seus mullets e franjinhas há duas décadas. O Rojo original fica em Caballito, mas para usufruir do espetáculo completo, recomendo a unidade de Palermo Viejo, na Calle Malabia 1.931. Após a lavagem -no teto, telas exibiam um clipe hipnótico e sensual que se repetiu dezenas de vezes-, uma diligente funcionária me levou pela mão até a sala principal. Ali está a magia do lugar. As duas paredes de espelhos, cortadas por faixas de LED em movimento multicolor, refletem-se num jogo infinito. De cada lugar, você é capaz de ver seu rosto e suas costas, assim como o rosto e as costas de todas as outras pessoas, tudo multiplicado até a dissolução. É como entrar dentro de um caleidoscópio.
Se nas milongas e cafeterias de Buenos Aires os espelhos evocam metafísica, esse aquário de reflexos desperta curiosidades e tremores em partes inferiores do abdômen. Enquanto sentem a suave mordida da tesoura contra seus couros cabeludos, os clientes portenhos se miram. E se miram. E se miram. E se miram.
Livraria da Folha
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