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joão pereira coutinho

 

06/02/2012 - 07h00

O turista ocidental

Sempre desconfiei do intelectual engajado que acredita na experiência pessoal como fonte de conhecimento político. Foucault é um caso: em 1979, o filósofo francês esteve em Teerã para acompanhar a revolução de Khomeini. Escreveu textos deslumbrados a respeito.

Hoje, relemos esses textos (em "Foucault e a Revolução Iraniana", livro de Janet Afary e Kevin B. Anderson publicado pela excelente É Realizações) e só podemos sentir uma mistura de repugnância com vergonha alheia.

O professor da USP Vladimir Safatle não é, obviamente, Foucault. Mas seria aconselhável que Safatle não cedesse à tentação de transformar turismo em sabedoria, sobretudo quando o tema é o conflito israelo-palestino.

Em artigo para a "Ilustríssima", intitulado "Aqui não há nada para ver", Safatle acredita que já viu tudo: Israel não reconhece o povo palestino; Israel é comparável à África do Sul do tempo do apartheid; Israel não aceita o regresso dos refugiados que fugiram com medo de suas casas em 1948.

Partindo do pressuposto caridoso de que Safatle está simplesmente mal informado, convém desmontar algumas das suas involuntárias ficções.

Começa Safatle por afirmar que Israel construiu um "muro" na Cirsjordânia para "isolar" os palestinos. Se Safatle esteve realmente na Cisjordânia, ele deveria saber que "muro", apesar de ser um termo mais dramático, não é o correcto: a construção em cimento representa apenas uma parte da "barreira de segurança".

Por outro lado, essa "barreira de segurança" só começou a ser erguida em 2002, não para "isolar" os palestinos, como escreve Safatle - mas para proteger os israelenses dos ataques terroristas contínuos que começaram com a segunda intifada (2000 - 2005).

O sucesso da barreira na diminuição dramática do número de atentados contra civis é o principal motivo pelo qual a esmagadora maioria dos israelenses apoia a sua manutenção.

Seguidamente, Safatle lamenta que Israel não reconheça a própria existência do povo palestino. Sem pretender aconselhar o filósofo a ler jornais com regularidade, alguém deveria comunicar-lhe que "reconhecimento mútuo" foi, precisamente, o que Rabin e Arafat fizeram nas missivas de 1993, como parte dos acordos de Oslo.

Passemos aos refugiados. Por que motivo Israel não aceita o regresso dos refugiados que fugiram das suas casas em 1948?

A pergunta já vem coxa de origem. Para início de conversa, é importante saber como começou --e quem começou-- a guerra de 1948. Uma pista: não foram os judeus.

Além disso, é igualmente importante explicar por que motivo os refugiados deixaram as suas casas. Terão sido expulsos pelas tropas israelenses? Ou deixaram-nas voluntariamente, esperando regressar após uma vitória árabe?

Os mais recentes estudos mostram uma confluência de factores: houve expulsão, sim; houve abandono voluntário, também. Mas esse nem sequer é o problema fundamental.

O problema fundamental é que as Nações Unidas aplicam aos refugiados palestinos um critério qualitativo (e quantitativo) que não aplicam aos outros refugiados de outras regiões do globo. Como?

Incluindo na categoria de "refugiado" não apenas os que abandonaram o território palestino em 1948 mas também os seus descendentes; e os descendentes dos seus descendentes; e os descendentes dos descendentes dos seus descendentes; e etc. etc.

A consequência dessa diferença doutrinal é que os 700 mil refugiados originais ascendem hoje a mais de 4 milhões. Aceitar todos os "refugiados" --leia-se: aceitar os filhos dos filhos dos filhos dos refugiados originais-- significa para Israel, um pequeno país com 6 milhões de judeus, um suicídio demográfico, territorial e cultural.

Arafat, com lamentável perversidade, sabia disso em Camp David e não hesitou em invocar o "direito de regresso" para destruir as negociações.

Por último, existe um apartheid "de facto" no interior de Israel entre israelenses e árabes-israelenses? A essa pergunta é possível responder com outra: existe algum país árabe onde os árabes tenham mais direitos políticos, sociais e económicos do que em Israel? Gostaria que Safatle me indicasse um só.

Resta-me acrescentar duas ou três coisas à narrativa de Safatle.

Primeiro, que "a existência de um estado autônomo e respeitoso das fronteiras de 1967" tem sido sucessivamente proposto pelas lideranças israelenses - desde 1967. Os árabes têm recusado.

Segundo, que não é possível escrever uma linha que seja sobre uma hipotética retirada da Cisjordânia sem analisar os resultados desastrosos da retirada de Israel de Gaza.

E, por falar em Gaza, talvez não fosse inútil que Safatle nos explicasse como é que Israel pode negociar com os palestinos do Hamas quando essa associação benemérita nem sequer reconhece o direito à existência de Israel.

Fazer turismo é bom. Mas, às vezes, pensar com a cabeça toda é melhor.

joão pereira coutinho

João Pereira Coutinho, escritor português, é doutor em Ciência Política. É colunista do 'Correio da Manhã', o maior diário português. Reuniu seus artigos para o Brasil no livro 'Avenida Paulista' (Record). Escreve às terças na versão impressa e a cada duas semanas, às segundas, no site.

 

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