João Pereira Coutinho

Escritor, doutor em ciência política pela Universidade Católica Portuguesa.

Salvar artigos

Recurso exclusivo para assinantes

assine ou faça login

João Pereira Coutinho

Vitória de Trump seria pior para o Ocidente do que o terrorismo de hoje

Crédito: Binho Barreto/Editoria de Arte/Folhapress Ilustração João Pereira Coutinho

Donald Trump põe em causa a participação dos Estados Unidos na Otan, mesmo que os países bálticos estejam ameaçados pela pata de Moscou. Donald Trump exorta o presidente Vladimir Putin a revelar e-mails comprometedores de Hillary Clinton.

Essas duas aberrações chegavam e sobravam para liquidar qualquer candidato "sério" à Casa Branca. Hoje, é apenas "politics as usual". Se os Estados Unidos não estão profundamente doentes, eu não sei o que é a doença.

Mas a revista "The Economist" sabe. No seu mais recente número, a publicação anuncia, com ares de grande novidade, que a divisão política do momento não é mais entre esquerda X direita. Mas entre abertura X fechamento.

De um lado estão aqueles que defendem a abertura ao mundo –material, intelectual, humana. Do outro, os que defendem barreiras, muros, isolacionismo. E, como normalmente acontece, é possível encontrar todo tipo de fauna nos dois lados da margem.

Trump é um caso: o seu desprezo pela Otan e a defesa de uma América fechada sobre si própria ("Americanismo, e não globalismo, será o nosso credo", diz o fanfarrão) são indistinguíveis da retórica anti-Otan e antiglobalização que é possível encontrar nas brigadas mais à esquerda. Os extremos se tocam?

Naturalmente. Sempre se tocaram. Sim, é possível dizer que a grande distinção política da modernidade é entre esquerda X direita –conceitos espaciais que nasceram na Revolução Francesa, ou seja, com o posicionamento da nobreza, do clero e do "terceiro Estado" no salão da Assembleia Nacional. Os dois primeiros ficaram à direita do presidente. O resto foi história.

Mas também é possível argumentar que existe uma distinção política mais antiga –e talvez mais fundamental. Quem o defende é Karl Popper, em livro de 1945, intitulado "A Sociedade Aberta e Seus Inimigos". Quando a "Economist" defende que a grande novidade política é a divisão entre abertura X fechamento, alguém deveria enviar o clássico de Sir Karl para o pessoal.

Defende Popper que essa tensão entre "sociedades abertas" e "sociedades fechadas" (ou, se preferirmos, "tribais") sempre fez parte da história intelectual do Ocidente. Muito antes da esquerda ser esquerda e da direita ser direita, havia dois modelos tutelares que influenciaram profundamente o pensamento e a ação dos homens: Atenas e Esparta.

As virtudes da primeira estão presentes nas palavras do governante Péricles (495""429 a.C.). No fim do primeiro ano da guerra contra Esparta, em 431 a.C., Péricles fazia o elogio fúnebre dos soldados que tombaram por Atenas. E defende os seus valorosos atos com as qualidades da cidade pela qual morrerem: a sua vocação democrática, comercial, cosmopolita, que servia de modelo para todo o Egeu.

As virtudes da segunda estão nos textos de Xenofonte (430""350 a.C.), um ateniense admirador de Esparta, e na apologia que ele faz de uma sociedade fechada, xenófoba, marcial.

Esparta venceu Atenas na Guerra do Peloponeso –um fato traumático que não passou ao lado de Platão quando ele escreveu a sua "República", um tratado que repudia a visão de Péricles. E, depois de Platão, defende Karl Popper que Hegel e Marx prolongaram o apelo da "sociedade fechada".

Mas a derrota de Atenas é apenas ilusória quando o ritmo da história é mais lento do que o ritmo dos homens. Para começar, foi o exemplo político de Atenas que inspirou as democracias liberais modernas e razão primeira da prosperidade, das liberdades e dos avanços científicos dessas democracias.

E, para acabar, o paradigma de Esparta, levado ao extremo nos projetos totalitários do comunismo e do nazismo, foi derrotado no século 20 pelos discípulos de Péricles.

Isso significa que a tensão entre abertura X fechamento está resolvida?

Não está. Donald Trump, nos Estados Unidos, ou Marine Le Pen, na França, são exemplos de como Atenas continua a ter os seus traidores. Gente que, para derrotar inimigos reais (radicalismo islâmico) ou imaginários (imigrantes pacíficos em busca de uma vida melhor), está disposta a copiar Esparta.

A vitória de Trump (em 2016) e de Le Pen (em 2017) seria um golpe para o Ocidente livre bem mais profundo do que os atentados terroristas sofridos até hoje.

Erramos: o texto foi alterado
A nobreza e o clero não se posicionaram à direita do rei —em oposição ao "terceiro Estado", à esquerda— nos Estados Gerais, como publicado na versão original do texto. A disposição, que originaria os conceitos espaciais da política, surgiu na Assembleia Nacional, e era em relação ao presidente. O texto foi corrigido.

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.