João Pereira Coutinho

Escritor, doutor em ciência política pela Universidade Católica Portuguesa.

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Fumar até morrer pode ser melhor que morrer sem fumar ou comer gordura

Leis proibitivas suscitam a pergunta: será que a saúde é mais importante que a liberdade e a autonomia individuais?

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Soube por esta Folha que a Nova Zelândia pretende proibir a venda de tabaco para pessoas nascidas após 2008. Não estou espantado. Era só uma questão de tempo até o paternalismo do bem se converter em proibicionismo puro.

No início, os fumantes foram avisados: o tabaco mata. Depois, os não fumantes foram protegidos: se o tabaco mata, a legislação antifumo remeteu os fumantes para guetos específicos, longe dos pulmões saudáveis.

Isso, que deveria ter encerrado a questão —quem fuma fuma; quem não fuma, não precisa de suportar o fumo dos outros—, não descansou a mentalidade de quem deseja um mundo purificado de qualquer imperfeição ou vício.

Quem nasceu antes de 2008 está para lá de qualquer salvação: são seres degenerados e infectos, que mais cedo ou mais tarde acabarão por sucumbir ao seu próprio veneno.

Não percamos tempo com eles, embora lamentemos as despesas de saúde que somos obrigados a suportar por causa dos seus vícios (os moralistas sempre esquecem que os fumantes também pagam impostos).

As esperanças do mundo, como se vê pela Nova Zelândia, estão na construção de um "homem novo", que hoje beira os 14 anos e que amanhã caminhará de pulmões limpos e cara risonha. Ah, o "homem novo", onde foi que eu já ouvi isso?

Mas façamos um esforço para compreender a mentalidade de quem proíbe. Será que a saúde é mais importante que a liberdade e a autonomia individuais?

Ilustração representando uma porta aberta, atrás da qual se embaralham escadas que levam a várias direções
Ilustração publicada em 13 de dezembro de 2021 - Angelo Abu

Os proibicionistas dizem que sim, até porque a liberdade e a autonomia de um fumante são conceitos assaz "problemáticos". Anos atrás, Kalle Grill e Kristie Voigt escreveram no Journal of Medical Ethics um artigo que resume bem o estado da arte ("The Case for Banning Cigarettes", o caso para proibir cigarros, em português).

Para começar, alguns autores defendem que só existe liberdade e autonomia quando falamos de atos racionais e voluntários.

Fumar não está entre eles: é uma escolha contrária ao bem estar do agente e muitas vezes começa de forma não informada sobre as suas consequências, sobretudo a longo prazo. Conclusão?

Quanto menos pensada é uma escolha, mais legítima é a intervenção legal para a frustrarmos.

Outros autores preferem usar os próprios fumantes como argumento proibicionista: em múltiplos estudos, são os próprios fumantes que afirmam que preferiam nunca ter fumado. Donde, a lei apenas lhes faz a vontade.

Acertadamente, Kalle Grill e Kristie Voigt rechaçam esses argumentos, que se convertem em pó quando nos confrontamos com fumantes que optaram por fumar com conhecimento de causa. Por outro lado, existe uma diferença entre desejar nunca ter fumado e desejar que se proíba o comércio de tabaco. Até porque essa proibição atinge também os não fumantes que, no uso da sua liberdade, podem querer fumar um dia, mesmo conhecendo os riscos associados.

Apesar de tudo, os autores defendem a proibição porque, pesando males e benefícios, concluem que a saúde (e a longevidade) é preferível à doença (e à morte prematura).

Em abstrato, talvez seja verdade. Mas quando introduzimos outros valores na equação, rapidamente chegamos a um impasse incomensurável: por que motivo a saúde é mais importante que o prazer, por exemplo? Que tipo de cálculo devemos fazer para concluir que a longevidade é preferível a uma vida mais curta e mais hedonista?

Precisamente: não podemos fazer esse cálculo por terceiros. Se aceitamos que pessoas diferentes desejam coisas diferentes para as suas vidas, nada autoriza a que o poder político imponha um único valor —a saúde, a longevidade— como o valor supremo de uma sociedade. E, se assim é, as escolhas dos outros, por mais insensatas que nos pareçam, podem não ser insensatas aos olhos daqueles que as preferem: fumar até morrer pode ser preferível a morrer sem fumar, ou beber, ou comer gordura, ou naufragar no sofá.

Minha única esperança é que o projeto antitabagista da Nova Zelândia tenha o mesmo destino que experiências semelhantes nos Estados Unidos entre 1890 e 1927: o fracasso.

E escrevo isso como não fumante. Contraditório? Não. Antes de ser não fumante, eu quero manter abertas todas as portas. A natureza humana, tão diversa e contraditória, funciona melhor com as portas abertas.

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