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joão pereira coutinho

 

18/10/2010 - 06h30

Pornografias chilenas

As horas passam, a tv permanece ligada. E os mineiros chilenos ocupam a tela de manhã, à tarde, à noite. Sim, eu sei: não é todos os dias que se assiste ao salvamento de 33 homens que o mundo considerava perdidos. E não é todos os dias que o engenho humano consegue desenvolver maquinaria sofisticada para mergulhar no abismo e resgatar 33 vidas humanas.

O problema está na insistência. Ou na proximidade dessa insistência. Com a tv ligada, sempre ligada, fui acompanhando a odisseia: as famílias que aguardavam - ansiosas, sofredoras, algumas descrentes; a emergência dos mineiros depois dos longos minutos de espera; os abraços incrédulos, os beijos apaixonados, as palavras de intimidade, que apenas devem ser ditas, ou escutadas, na intimidade. E as câmeras sempre em cima dessa pobre gente, sugando cada expressão, confidência ou suspiro com voracidade vampiresca.

Haverá quem se comova com tamanho espetáculo. Haverá quem delire com as declarações dos familiares antes do salvamento - os medos, as noites em branco, as manifestações de esperança e fé. Haverá quem goste de visitar os mineiros no hospital; confirmar o diagnóstico clínico com os clínicos de serviço; e até revisitar a biografia de cada um deles - conhecer o historial médico dos homens; saber quem abusava da garrafa, ou dos comprimidos; separar os fortes dos fracos, os corajosos dos frágeis.

Não contem comigo. À medida que as horas passavam e as televisões chafurdavam ainda mais nesse espetáculo de desespero e alívio, terror e salvação, havia uma sensação de desconforto que crescia com cada mineiro salvo. É o tipo de desconforto que sentimos quando presenciamos a dor e a angústia alheias, sentimentos que devem ser tratados com um recato e um sentido de pudor que eu não vi no Chile.

Festejo os 33 homens salvos. Não festejo o espetáculo pornográfico com que as televisões do mundo inteiro nos arrastaram a todos para o buraco.

joão pereira coutinho

João Pereira Coutinho, escritor português, é doutor em Ciência Política. É colunista do 'Correio da Manhã', o maior diário português. Reuniu seus artigos para o Brasil no livro 'Avenida Paulista' (Record). Escreve às terças na versão impressa e a cada duas semanas, às segundas, no site.

 

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