Lira Neto

Jornalista, pesquisador e biógrafo, já ganhou quatro prêmios Jabuti por sua obra.

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Lira Neto

Uma revolução em curso

Crédito: Maira Mendes / Editoria de Arte/Folhapress

O fato me chamou a atenção desde quando estive pela primeira vez no Estado norte-americano de Vermont, no verão de 2015, como escritor-residente na Portuguese School, do Middlebury College.

Um dos dois senadores eleitos pelos cidadãos de Vermont, Bernie Sanders, senhor grisalho de 76 anos, campeão de votos com 71% dos sufrágios, define-se como socialista democrático e defende plataforma política bastante ousada para os padrões daquele país.

Um pacote que inclui propostas de liberação da maconha, legalização do aborto, gratuidade do ensino superior e o fim da discriminação contra minorias sexuais.

À época, em entrevista a uma emissora de rádio local, Bernie dissera que se sentia preparado para concorrer à Presidência dos EUA.

Muita gente deu risada. Político independente, com a carreira construída à margem dos grandes partidos Democrata e Republicano, crítico do capitalismo predatório e contrário às doações eleitorais por parte de bancos e corporações, ele parecia acometido de alguma espécie de delírio.

O tempo, porém, mostrou que falava sério. No ano seguinte, 2016, quando estive pela segunda vez no Middlebury College, Bernie já disputava, palmo a palmo com Hillary Clinton, as prévias à Casa Branca. Para entrar na disputa, o azarão se filiara aos Democratas, mantendo a postura de independência e suas polêmicas bandeiras originais.

Perdeu por pouco, chegando a bater Hillary em 23 Estados. Em Vermont, obteve 86% das preferências. Ali, é invencível. Foi eleito três vezes prefeito da simpática e progressista Burlington, maior cidade do Estado, e se notabilizou pelo implemento de projetos de revitalização urbana. Foi apontado pelo "US News & World Report" como um dos melhores administradores do país.

Bernie chegou ao Senado depois de ter sido representante de Vermont na Câmara dos Deputados ao longo de 16 anos, reeleito sucessivamente. Como parlamentar, votou contra a intervenção militar no Iraque e no Golfo Pérsico, opôs-se à espionagem de e-mails e telefonemas de cidadãos comuns pela Agência Nacional de Segurança e exigiu uma auditoria sobre os empréstimos com juros quase zero a plutocratas quando do colapso financeiro de 2008.

Depois de perder para Hillary nas prévias e assistir à chegada de Donald Trump à Casa Branca, Bernie continua mais provocativo do que nunca. Passou a comandar um grande movimento civil, intitulado "Our Revolution" (Nossa Revolução).

Com filiados em todo o país e milhares de voluntários, o movimento trabalha para eleger o maior número possível de representantes comprometidos com as pautas progressistas, de diretores de escolas a integrantes do Congresso. No site oficial do grupo (ourrevolution.com), pode-se conhecer as ideias que o inspiram.

O combate à desigualdade social norte-americana, o acesso universal à saúde pública, os programas de assistência à infância, o ensino superior gratuito e o fim da intransigência contra imigrantes e refugiados estão na lista. Os repúdios à violência policial contra negros e latinos e à discriminação com base na identidade de gênero e orientação sexual dos indivíduos, assim como aos crimes contra os direitos dos índios, idem.

O "Our Revolution" também questiona a política externa dos EUA, historicamente baseada mais na força das armas de que nos argumentos da diplomacia. Defende também a construção de habitações populares para abrigar os milhares de norte-americanos sem-teto, o fortalecimento da seguridade social e a adesão do país aos acordos internacionais sobre o clima.

A lista é vasta, mas vale ressaltar ainda a proposta de leis restritivas para o financiamento milionário de campanhas políticas e, em um país no qual o voto não é obrigatório, o incentivo à maior participação dos eleitores nas urnas.

Nas prévias democratas, Bernie recusou apoio financeiro de conglomerados empresariais e fez da militância espontânea o seu grande trunfo eleitoral. Do mesmo modo, o "Our Revolution" mantém-se à custa de pequenas doações pessoais e da venda de souvenires, como camisetas, canecas, bottons, imãs de geladeira, sacolas e adesivos para carros.

Pode parecer irrelevante e utópico. Mas foi dessa forma que, em 2016, Bernie quase obteve o direito de disputar a eleição com Trump. De lá para cá, sua militância só cresceu e faz das redes sociais o cenário privilegiado de ativismo político. "Eles têm o dinheiro, mas nós temos as pessoas", avisa, já mirando 2020.

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