É editora de 'Mundo' e foi correspondente em Nova York, Genebra e Washington. Escreve às sextas sobre séries de TV.
'House of Cards' merece dez em alegoria por sua quarta temporada
"House of Cards" é um pouco como seu protagonista, Frank Underwood (Kevin Spacey), e parte de seus pares políticos: complexa, intrigante e sedutora, mas às vezes tão prepotente em relação a seus poderes de persuasão que o equilíbrio entre repulsa e atração se torna uma dura escolha entre crer e não crer.
Ou pura fé em que algo mudará.
Esta quarta temporada, que entrou no ar no último dia 4, sublinha qualidades e falhas que vinham aparecendo nos anos anteriores. Fica evidente também que a história é e sempre foi apenas sobre Frank e Claire (Robin Wright), e tudo à volta deles é raso ou até mesmo risível.
Mas que dupla. O talento de Spacey e Wright, o amor com que esses personagens foram desenvolvidos e a forma como crescem e se alternam entre humanos e desumanos tornam tudo pecado menor.
Se o espectador aceita se deixar envolver por eles não há por que crer que eleitores não aceitariam.
Eis o melhor dos truques de "House of Cards". Ela é verossímil e fascinante não porque reproduz a política tal e qual, mas porque os sentimentos que desperta são os mesmos da política. Shakespeare sabia disso, e os produtores beberam ali (busque realismo político em Shakespeare; o trunfo são as alegorias).
A trama é bem engendrada, com seus espelhos da vida real e seus exageros. Mas, à exceção de Claire & Frank, os personagens são imperfeitos, um séquito de semibobos a circundar o casal presidencial. Mesmo Doug (o excelente Michael Kelly), único ao longo dos anos a ganhar alguma complexidade, desta vez se limita ao papel de cão fiel, com dores de consciência incondizíveis com o que vínhamos vendo.
Nem uma atriz competente em um papel de peso, como Neve Campbell (a eterna Julia de "Party of Five") vivendo uma eficaz gerente de campanha, supera a caricatura.
Há o alento de Ellen Burstyn (indicada ao Oscar pelo magnífico "Réquiem para um Sonho"), a mãe moribunda e megera de Claire, única capaz de fazer sombra à dupla.
E um novo rival para Frank, o ambicioso governador Will Conway, que na pele de Joel Kinnaman (o incrível Holder de "The Killing" ) ganha dimensões semelhantes às de Frank.
Mas é isso. Assessores, jornalistas, personagens secundários são anódinos quando não irritantes.
Junkies políticos apreciarão as semelhanças com a atual campanha presidencial americana (polêmica com a Ku Klux Klan, uma vaga na Suprema Corte, o Estado Islâmico).
Mas o maior prazer desta temporada é assistir à desumanização de Claire. Os 13 episódios são dela, mais soturna, manipuladora, implacável. Não à toa o figurino em marfim que a consagrou dá lugar cores escuras.
Pena que o formato maratona que a série pressupõe, com todos os episódios lançados de uma vez, a sabota. Faz falta o exercício de comentar em grupo, possível só quando todos assistem ao mesmo tempo, como fim de novela. Não há catarse, tão essencial na política e na ficção.
A quarta temporada de "House of Cards" está disponível na Netflix
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