Luciana Coelho

Secretária-assistente de Redação, foi editora do Núcleo de Cidades, correspondente em Nova York, Genebra e Washington e editora de Mundo.

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Luciana Coelho

O 'binge watching' está matando o melhor das séries

Quando eu era estudante, chegava ansiosa em casa para ver um capítulo de "Anos Incríveis" (1988-1993), a obra-prima de Carol Black e Neal Marlens sobre a adolescência de Kevin Arnold (Fred Savage) no fim dos conturbados anos 60/começo dos 70 nos EUA, que a TV Cultura exibiu aqui na primeira metade dos anos 90.

Via sempre com o meu irmão. Amigos da escola também assistiam. Comentávamos o episódio no dia seguinte. Choramos juntos no capítulo final.

Seria um pouco assim com "Friends", com a tensa "24 Horas", e, adulta, com "Breaking Bad". Vi amigos ansiosos pelos finais de "Twin Peaks", de "Arquivo X", de "Lost", de "Sopranos".

Esse hábito coletivo está morrendo, graças a uma inovação da Netflix (que trouxe, aliás, muitas coisas positivas ao nosso consumo de entretenimento e cultura). A ideia de lançar as produções em lote acaba com vários elementos que fazem o formato seriado ser o que é.

Em inglês, o nome da brincadeira é "binge watching", expressão que evoca "binge drinking", o costume de pedir várias bebidas de uma vez e ingeri-las às pressas porque um bar está para fechar. Pouca gente se sai bem nisso.

Séries foram pensadas para serem vistas em pequenas doses diárias ou semanais, entrecortadas para que haja tempo de processar a trama.

Caso contrário, são apenas como um filme ou uma peça esticados –e são raríssimos os dramaturgos e diretores no mundo que conseguiriam conduzir com vigor um filme ou peça com sete, dez, 12 horas.

A disponibilização em lote mata aquele que é o mais central dos elementos dos folhetins, o "cliff hanger", o gancho que retém o espectador instigado até o episódio seguinte.

Com o "binge watching", mesmo em uma bem-sucedida "House of Cards" o corte entre os capítulos é aleatório, até anódino. É preciso boa-vontade para encarar toda a trama, e isso só piora em produções nas quais o suspense é mais brando, como em "Orange Is the New Black", que volta ao ar em junho.

Acaba também a catarse coletiva trazida pelo prazer de comentar um episódio. Você está no terceiro, seu amigo está no oitavo, a namorada está na outra temporada. E dá-lhe spoiler. Esqueça a "segunda tela" –comentar em redes sociais, como final de novela, jogo de futebol ou cerimônia de premiação.

Nem críticos se entendem sobre em que ponto é possível escrever uma resenha digna (esta colunista viu HoC inteira, mas custou uma semana).

Em um primeiro momento, os ansiosos se sentirão bem servidos. Nem todo mundo, porém, pode ou quer trocar o dia pela noite a fim de terminar logo a temporada. Vale ver sozinho? A tensão se mantêm tantas horas a fio? E a capacidade de apreciar a história? A janela de atenção humana, afinal, é curta –e cada vez menor.

Para quem vê na política brasileira algo de "House of Cards", fica a sugestão para assistir "Wolf Hall" e "Black Mirror" (ambas na Netflix), que pintam um quadro mais sombrio.

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