É jornalista e mestre em teoria literária e literatura comparada pela USP. Escreve aos domingos, a cada duas semanas.
Filme tcheco dos anos 1970 é relato mágico sobre a eclosão da sexualidade
Com montagem não linear, imagens de sonho, metáforas visuais da sexualidade em floração e trama de conto de fadas macabro (incluindo vampiros), "Valerie e a Semana das Maravilhas" tem elementos que poderiam facilmente se prestar a rótulos redutores como cinema experimental ou fantástico. No entanto, aquilo que predomina em cena é algo mais difícil de definir e realizar: a beleza em estado bruto, cuja irradiação faz com que tudo ao largo pareça putrefato e doentio.
O diretor Jaromil Jires (1935-2001) fez parte, ao lado de Milos Forman e Vojtech Jasny, da inventiva "nouvelle vague" tcheca, egressa da Famu (Escola de Cinema e TV, fundada em Praga após a Segunda Guerra).
O título desse filme de 1970 remete a "Alice no País das Maravilhas", de Lewis Carroll, mas se baseia em um romance dos anos 1930 do poeta surrealista Vitezslav Nezval.
Divulgação | ||
A atriz tcheca Jaroslava Schallerova, em cena do filme "Valerie e a Semana das Maravilhas" |
Valerie (pronuncia-se "valérié") é uma órfã que vive com a avó doente, de aparência sepulcral. Logo no início, seus brincos são roubados e em seguida devolvidos (agora com poderes mágicos) por Orlik, por quem a protagonista desenvolve progressiva atração.
Na sequência, a chegada à cidade de uma trupe de atores faz Valerie ser assolada pela visão de um sinistro homem mascarado, que esconde rosto também sepulcral. A partir daí, intercalam-se cenas em que raparigas em flor se banham e se beijam seminuas (tendo à espreita Valerie, que vai perdendo a inocência) com figuras que remetem explicitamente ao "Nosferatu", do expressionista Murnau.
Há uma conotação anticlerical no filme, que associa o assédio de Valerie, por um padre, à vampirização do desejo e de sua poética licenciosidade por laços familiares perversos, dos quais ela e Orlik seriam o fruto incestuoso.
E a angelical Jaroslava Schallerova, então com 13 anos, compõe uma personagem de desconcertante erotismo, que a aproxima de Alice Liddell (musa de Carroll) e seria impensável para padrões atuais de vigilância antipedófila --num triunfo tardio do cinema de invenção sobre o moralismo de mercado.
FILME
VALERIE E A SEMANA DAS MARAVILHAS **
DIRETOR: Jaromil Jires
DISTRIBUIÇÃO: Lume (1970, DVD, R$ 39,90)
LIVRO
ALICE NO PAÍS DAS MARAVILHAS **
Com lógica onírica e animais e objetos que adquirem função mágica, o livro do escritor britânico (aqui ilustrado por Luiz Zerbini) é, desde o título, fonte para o diretor tcheco Jaromil Jires.
AUTOR: Lewis Carroll
ILUSTRADOR: Luiz Zerbini
TRADUÇÃO: Nicolau Sevcenko
EDITORA: Cosac Naify (2009, 168 págs., R$ 49)
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LIVRO
OS GATOS DE COPENHAGUE **
James Joyce; tradução de Dirce Waltrick do Amarante (Iluminuras, 24 págs., R$ 33)
Em viagem pela Dinamarca, o escritor irlandês James Joyce enviou uma carta ao neto que, ilustrada pela italiana Michaella Pivetti, se transforma num conto infantil prenhe de ironia. O autor de "Ulisses" descreve um país sem gatos, mas repleto de policiais e crianças cordatas, prometendo introduzir ali a liberdade e a indisciplina felinas.
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FILME
ELEFANTE BRANCO **
Pablo Trapero (Paris, locação)
Após massacre na Amazônia, missionário belga é levado por amigo padre (Ricardo Darín) a uma favela argentina, onde a comunidade constrói um conjunto habitacional sob o esqueleto de um hospital inacabado. Cineasta da denúncia, Trapero celebra o idealismo da igreja alternativa, mas é vencido pela violenta (e populista) fatalidade latino-americana.
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Cena do filme "Elefante Branco", com Jérémie Renier (à esq.) e Ricardo Darín |
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DISCO
CANÇÕES DO ESTÚDIO REALIDADE *
Rodrigo Garcia Lopes (Tratore, R$ 29,90)
No segundo disco do poeta paranaense, a invenção imagética supera a toada amena, entre o jazz e a MPB --ganhando mais trepidação em "Vertigem (Um Corpo que Cai)", encontro inusitado de Hitchcock com o simbolista Alphonsus de Guimarães, e na urbana "New York", no espírito da vanguarda paulistana dos anos 1980, em especial seu conterrâneo Arrigo Barnabé.
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Segundo disco do poeta paranaense Rodrigo Garcia Lopes |
Livraria da Folha
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