Manuel da Costa Pinto

Jornalista, mestre em teoria literária e literatura comparada pela USP

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Manuel da Costa Pinto

A legião dos mortos

O irlandês James Joyce (1882-1941) ocupa lugar central na literatura do século 20 por "Ulisses" e "Finnegans Wake", em que a fulgurante invenção linguística (fluxos de consciência, neologismos) criou um idioma literário para devassar as paisagens interiores das personagens e conferir um sentido épico à vivência do homem comum. Entretanto, uma de suas obras-primas é um pequeno livro com linguagem seca e sem sobressaltos, publicado em 1914: "Dublinenses".

São 15 contos ambientados em sua cidade natal, marcados por uma estagnação em que os pequenos êxtases ou efusões das personagens acontecem em breves lapsos de tempo, para logo se esvaírem na irrelevância. O clímax dessas narrativas de anticlímax é o último conto, "Os Mortos", que ganha agora edição bilíngue, em capa dura, com preciosas notas do tradutor Tomaz Tadeu.

A ação se passa durante o tradicional baile pré-natalino promovido pelas tias solteironas do protagonista Gabriel Conroy. Durante o jantar, conversa-se um pouco de ópera, outro tanto de religião, com a questão nacional opondo os convivas ao europeizado Gabriel, que não fala gaélico (língua irlandesa) e escreve para um jornal que defende a união da Irlanda com a coroa inglesa.

Isso não impede que —após declarar estar cheio do próprio país e censurar o desejo da mulher, Gretta, de excursionar pelo interior— Gabriel faça um discurso celebrando a "genuína, calorosa e cordial hospitalidade irlandesa". Tudo se encaminha para um desfecho harmônico, acolhedor como o espírito de Natal.

Na volta para o hotel em que estão hospedados, porém, Gabriel sente um ardor renovado por Gretta, pergunta à mulher por que ela estivera melancólica naquela noite e esta responde que ouvira ali uma canção que a lembrava um antigo amor, do qual ele jamais suspeitara.

As páginas finais são como o movimento derradeiro de uma sinfonia. Os fios se atam, a petulante aversão de Gabriel pela Irlanda se converte em sentimento de inadequação e vergonha, confluindo para desejos exumados de Gretta, sua nostalgia de um passado interiorano no qual o antigo amado morrera por ela. A alma de Gabriel, escreve Joyce, mergulha então na "região onde vagam as vastas legiões dos mortos", onde aquilo que é irreversível —o local de nascimento, os seres sepultos no passado— continua a determinar e assombrar o presente.

OS MORTOS
AUTOR: James Joyce
TRADUTOR: Tomaz Tadeu
EDITORA: Autêntica
(2016, 144 págs., R$ 47)

Conexões

FILME

OS VIVOS E OS MORTOS
Lançado em 1987, último filme do diretor John Huston é adaptação do conto de Joyce com sua filha Anjelica Huston no papel de Gretta.
DIREÇÃO: John Huston
DISTRIBUIÇÃO: Cult Classic
(1987, DVD R$ 12,90)

LIVRO

BREVE ROMANCE DE SONHO
Na novela do austríaco (adaptada por Stanley Kubrick em "De Olhos Bem Fechados"), uma fantasia sexual da mulher deflagra delirante ciúme retrospectivo do marido.
AUTOR: Arthur Schnitzler
TRADUTOR: Sergio Tellaroli
EDITORA: Companhia das Letras (2000, 128 págs., R$ 34)


Crédito: Divulgação/Divulgação Cena do filme "Lolita"
Cena do filme "Lolita"

Outras dicas para ficar em casa.

FILME

LOLITA
DIRETOR: Adrian Lyne (Continental, 1997, R$ 39,90)
Lançada em 1997, essa adaptação do romance homônimo de Nabokov sofreu bastante com as comparações com a versão de Stanley Kubrick (1962). Mais fiel ao texto, mais explícito (e menos sarcástico) do que Kubrick, Adrian Lyne acertou ao colocar o sempre perturbador Jeremy Irons no papel de Humbert Humbert -o professor de literatura que nutre uma paixão doentia pela ninfeta.

LIVRO

O SÉCULO DE CAMUS
AUTORA: Lucia Miguel Pereira (Graphia, 328 págs., R$ 62)
Grande nome da crítica literária brasileira, morta precocemente em um acidente aéreo, Lucia Miguel Pereira (1901-1959) tem aqui reunidos seus artigos de jornal publicados entre 1947 e 1955. O título se refere ao papel do escritor como testemunha de seu tempo, a exemplo de Albert Camus (1913-1960) e dos demais autores abordados nos escritos -predominantemente franceses e de língua inglesa.

DISCO

BERNSTEIN - SYMPHONY Nº 3 "KADDISH"
AUTOR: Sinfônica de Baltimore; Marin Alsop, regente (Naxos, R$ 58,10, importado)
Um dos maiores regentes de seu tempo, Leonard Bernstein (1918-1990) foi um compositor que fundiu referências do jazz e do judaísmo. Interpretada pela orquestra de Baltimore, a sinfonia "Kaddish" traz um narrador em embate com Deus e é regida por Marin Alsop, que foi aluna de Bernstein e leva sua autoridade para outras peças corais do disco -"Missa Brevis" e "The Lark" (estas, com a Osesp).

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