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marcelo coelho

 

12/09/2012 - 03h00

Emissários do sul

No cinema, nem se discute. Os argentinos estão fazendo filmes bem melhores do que nós.

E, pelo que andei vendo, não será na literatura que poderemos empatar o jogo. Compare-se a recente edição da revista "Granta", dedicada aos jovens escritores brasileiros, com "Os Outros "" Narrativa Argentina Contemporânea", que saiu há pouco em tradução pela editora Iluminuras.

Verdade que a seleção de Luis Gusmán traz alguns escritores nascidos há bastante tempo, ao passo que os brasileiros selecionados na "Granta" tinham de ter menos de 40 anos.

Alguns dos autores argentinos mais jovens, como Florencia Abbate e Flavia Costa, compartilham a tendência de seus contemporâneos brasileiros a fixar-se na primeira pessoa, como se preservados da experiência com o mundo exterior.

Tome-se, entretanto, o conto de Pablo Katchadjian, nascido em 1977. Se for pela extrema violência de algumas cenas, "O Gatilho" não foge do gosto literário brasileiro recente, aliás banido da revista "Granta".

Mas nesse conto, e na maioria dos escolhidos por Luis Gusmán, há um sentido da forma que raras vezes aparece na escrita dos brasileiros. Quero dizer com isso que um conto não é apenas uma peça de ficção mais ou menos curta, e às vezes nem tão ficcional assim, com um título por cima.

Não que faça sentido falar em regras fixas, mas o prazer e o efeito literário de um bom conto estão ligados a um certo sentido de completude, de desfecho, que é ainda mais artístico quando a história termina com uma leve suspensão.

Ou seja, a narrativa se fecha, o escritor se cala, mas o enredo ainda guarda alguma coisa oculta, não escancara o seu segredo.

"O Gatilho" é uma história de guerra, não apenas um testemunho da violência na periferia. As decisões tomadas pelo personagem, num momento de pressão extrema, sucedem-se rapidamente, num dominó catastrófico. O contista "normal" terminaria por aí, contente com seu banho de sangue.

Um paragrafozinho de epílogo, irônico e inacreditável, faz toda a diferença na história.

Não se trata do melhor conto do volume. Na minha opinião, o prêmio vai para "O Emissário", de Guillermo Piro, nascido em 1960. Também aqui, o senso da condução da narrativa faz com que, de pequena surpresa em pequena surpresa, tudo se ajuste no final.

A história termina como deveria terminar, mas o leitor, que vinha sendo levado pelas mãos do narrador, não deixa de se sentir um pouco insatisfeito: é só isso?

Intervém um comentariozinho nos últimos parágrafos, que nem chega a ser epílogo --e o enredo propriamente dito finalmente se enquadra nas mãos do escritor.

Talvez esse "enquadramento" seja característico da forma clássica do conto, na qual muitas vezes a história não começa diretamente, mas é narrada por um personagem, que toma a palavra no começo do texto.

"O Emissário" também responde com inteligência a uma situação que dá trabalho aos escritores de lá e daqui. A saber, a da nova inserção de países como Argentina e Brasil no cenário internacional.

O grande risco, que muitos autores de "Granta" não souberam evitar, é entregar-se a uma espécie de escrita globalizada. Por exemplo, escreve-se sobre um jovem intelectual que recebe uma bolsa para estudar em Berkeley, ou de uma jovem curadora de artes plásticas às voltas com amigas em Estocolmo.

O tema internacional é lindamente tratado em "O Emissário", com uma dose de irrealidade que evita qualquer encantamento ingênuo. A ingenuidade também passa longe de "Donaldson Park", de Sergio Chejfec.

Já outra tentação --a de mostrar que nada mudou e que a realidade continua sórdida na periferia-- é vencida por Luis Tedesco com ainda maior domínio estilístico.

Um lençol pendurado no varal, a graminha seca ("neurológica") de um terreno popular, uma cerca de arame no bairro de periferia: não há detalhe que não se transforme numa espécie de cinema quase sem personagens, mas cheio de emoções intuídas, nesses textos antológicos.

Antológicos, afinal de contas, é o que se espera que sejam os contos de uma antologia. Não é o que costuma acontecer no Brasil.

Voltados muitas vezes para o passado, para a decadência e a velhice, os escritores de "Os Outros" estão no lugar certo --pena que na Argentina. Não tão longe, afinal, que não se possa conhecê-los.

marcelo coelho

Marcelo Coelho, jornalista, é membro do Conselho Editorial da Folha. É autor dos romances 'Patópolis', 'Jantando com Melvin' e 'Noturno' e das coletâneas de ensaios 'Tempo Medido', 'Gosto se Discute' e 'Trivial Variado'. Comenta assuntos variados. Escreve às quartas e mantém um blog no site da Folha.

 

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