É membro do Conselho Editorial da Folha. É autor de romances e de coletâneas de ensaios. Comenta assuntos variados. Escreve às quartas.
Mostra de Calder traz esculturas de um mestre com traços de criança
O escultor americano Alexander Calder (1898-1976) passou longas temporadas na França, entrando em contato com artistas de vanguarda (em especial os surrealistas) desde a década de 1930.
Foi Marcel Duchamp, aliás, quem deu o nome de "mobiles" para a principal invenção plástica de Calder: estruturas levíssimas de arame, em geral presas no teto, de onde pendem finas lâminas ou pétalas de metal, que oscilam no ar.
Visitando o ateliê de Calder em Paris, em meados da década de 1940, o filósofo Jean-Paul Sartre quase foi atingido por uma das placas balançantes do escultor. "Um móbile, até aquele momento em repouso, tomou-se de violenta agitação contra mim."
Luli Penna/Editoria de Arte/Folhapress | ||
"Dei um passo para trás", continua o filósofo, "e achei que tinha me colocado fora de seu alcance." Só que, depois de ter cessado a agitação e parecer "ter recaído na morte", a escultura "pôs-se indolentemente em marcha, como contra a vontade, girou nos ares e quase acertou o meu nariz".
Em sua repulsa face a tudo que é inerte, acomodado e sem liberdade neste mundo, o filósofo celebrava as esculturas de Calder por se constituírem em "seres estranhos, a meio caminho entre a matéria e a vida".
Quando se mexem, os móbiles "ora parecem ter um objetivo, ora parecem ter-se esquecido do que queriam no meio do caminho". A escultura "ondula, hesita, diríamos que se engana e se corrige".
Poderia ser comparável, então, à consciência humana; mas o próprio Sartre refina a comparação, dizendo que os móbiles "são ao mesmo tempo combinações técnicas, quase matemáticas, e o símbolo sensível da Natureza". Essa "grande e vaga Natureza", completa, "da qual não sabemos nunca se é o encadeamento cego de causas e efeitos ou o desenvolvimento tímido, sempre retardado, desfeito e interrompido, de uma Ideia".
No momento em que escrevia esse texto (1946), Sartre estava se debatendo justamente entre a defesa de uma filosofia fundamentada na liberdade do ser humano e os apelos da rígida ortodoxia do "materialismo dialético", com a suposta descoberta de leis infalíveis do desenvolvimento histórico.
A impressão que se tem, vendo a mostra de Calder em cartaz no Itaú Cultural, é bem distinta. Isolado entre paredes brancas, sem nenhuma janela aberta por perto, cada mobile parece mexer-se o mínimo possível.
O que se vê é a tentativa, quase que totalmente atingida, de manter-se em equilíbrio. De grandes dimensões, ou quase no tamanho de libélulas, os móbiles impõem respeito e distância ao espectador.
O respeito não exclui, por certo, um sorriso de encantamento. Mas provoca certo silêncio, quase religioso, como diante de uma coisa a ponto de romper-se.
Movimento, capricho e arbitrariedade -características tão típicas de uma criança de quatro ou cinco anos- parecem mais visíveis em outro aspecto da obra de Calder: o seu "circo", que pode ser visto numa das salas do Itaú Cultural graças a um lindo documentário de Carlos Vilardebó.
Nesse filme de 1961, o artista de cabelos brancos manipula seus bonequinhos -o atirador de facas, o casal de trapezistas, os cães amestrados, o leão- como se fosse uma criança.
É comum dizer, diante de uma obra de arte moderna, que "até uma criança faria isso". Por vezes, a opinião não é tão errada assim.
Feitos de cortiça e de arame, vestidos com pedacinhos de pano ou de barbante, as figuras do "Circo Calder" parecem de fato feitas por uma criança -só que não. Em sua precariedade, rodinhas de madeira pintada sugerem com astúcia perfeita o ângulo e o movimento das patas de um basset.
A tecnologia moderna aposta na velocidade, na assepsia do metal e do plástico, no domínio sobre o acaso e o acidente. Imagine-se alguém que, como uma criança, não percebesse para que serve tanta tecnologia, e quisesse apenas imitá-la inutilmente. A mostra de Calder -e de suas influências, muito bem selecionadas, sobre artistas brasileiros- está em cartaz até dia 23/10.
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