Marcelo Coelho

Mestre em sociologia pela USP, é autor dos romances “Jantando com Melvin” e “Noturno”.

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Marcelo Coelho

Trump elege seus inimigos, enquanto Hillary Clinton quer agradar a todos

Como qualquer pessoa de fora, fiquei surpreso com a ascensão de Donald Trump na corrida presidencial americana.

Só aquele topete amarelo seria suficiente, na minha opinião, para acabar com a respeitabilidade de um candidato. Vieram muitas gafes; ele não parou de crescer.

Entendo melhor a figura depois de assistir ao debate desta segunda-feira (26) à noite. Na CNN, os comentaristas não tinham dúvida: Hillary Clinton saiu vencedora do seu encontro com o republicano; a noite tinha sido "desastrosa" para Trump.

Como não sou americano, e não acompanho as questões fatuais em jogo na disputa, os erros e mentiras de Trump deixaram de me causar o impacto que tiveram sobre os especialistas da TV.

Talvez eu tenha visto o debate com os olhos de um eleitor americano especialmente desinformado e simplório –o que pode ser representativo quanto às chances de sucesso de Trump, afinal de contas.

Ele tira todas as vantagens de estar na oposição; suas intervenções certamente serviam para expressar o descontentamento de muita gente com o declínio americano, com a falta de empregos e de segurança.

Hillary Clinton parecia não ter nada a oferecer. Podia argumentar, com razão, que qualquer problema envolve soluções complicadas, em muitos níveis, e que não existe fórmula instantânea para tornar "a América novamente grande".

Veja-se a pergunta que fizeram à candidata democrata sobre a violência de policiais contra negros em algumas cidades americanas.

Hillary Clinton não queria falar mal dos policiais; tinha de incorporar, de todo modo, os sentimentos da comunidade negra frente a casos de assassinato motivados, sem dúvida, por uma cultura de preconceito e discriminação.

Bem, explicou a candidata, esse é um problema que terá de ser abordado em vários níveis... O racismo produz marcas ainda visíveis em nosso país... Temos de aproximar a polícia da comunidade... Os próprios policiais reclamam das deficiências em seu treinamento.

Tratava-se de um discurso extremamente cuidadoso, sem nada de concreto. Chega a vez de Trump. Conhecedor de seu eleitorado, ele não estava disposto a muitos floreios retóricos em favor dos negros.

Saiu-se com uma generalidade: "precisamos de duas palavras", disse ele. "Lei e ordem". Era uma maneira de agradar a polícia, e de justificar a prática de se revistarem negros nas ruas em função de qualquer "suspeita" imaginária.

Como ampliar essa mensagem? Trump continuou afirmando que, nas comunidades latinas e negras, há falta de segurança, os cidadãos honestos não podem sair nas ruas, etc. Logo, uma política mais "dura", como se diz por aqui, seria benéfica a negros e imigrantes, que não querem viver num "inferno".

Dentro de seu ponto de vista, Trump estava dizendo coisa com coisa, acenando para latinos e negros mais conservadores. Hillary Clinton saiu-se com um truque dos mais baratos.

Disse não concordar com essa visão "preconceituosa", e que nos bairros negros encontra comunidades trabalhadoras, prósperas, orgulhosas de sua origem, sendo errado chamar aqueles lugares de "inferno".

Numa palavra, Hillary queria agradar a todo mundo. Desde o começo, Trump apontava para inimigos, reais ou não. Seriam o Exército Islâmico, a China, o México, qualquer outro concorrente comercial que tire as indústrias e empregos do solo americano, e naturalmente a regulamentação e a burocracia estatais. Juntou ressentimento com promessas de salvação.

Hillary ainda respondeu que a desregulamentação promovida pela ideologia republicana foi um dos fatores da crise de 2008. Mas não podia nem queria apontar seus próprios inimigos. Assim, é contrária a cortar os impostos dos mais ricos. Evitou condenar, contudo, os privilégios que facilitam a vida dos iguais a Trump.

Com exceção de algumas estocadas contra as bobagens do republicano, a fala de Hillary Clinton resulta em muito pouco. Acordos comerciais, luta contra terrorismo, novas fontes de energia, tudo é mais complexo do que pensa Trump, e tudo o que está sendo feito vai seguindo o caminho certo.

Não haveria mais nada a esperar da candidata? Talvez seus eleitores quisessem apenas que ela os representasse num ponto fundamental. O de dizer que Trump é um louco, um demagogo, um bufão. Mas Hillary não foi por aí.

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