É membro do Conselho Editorial da Folha. É autor de romances e de coletâneas de ensaios. Comenta assuntos variados. Escreve às quartas.
Gozações com atrasados do Enem sugerem país mais favorável ao rigor
Os mais antigos se lembram das manchetes que apareciam pouco antes da Semana Santa: "Não vai faltar peixe na sexta-feira, garante Secretaria do Abastecimento".
A abstinência de carne nessa época já não se observa mais em nosso país; ficamos muito menos católicos, e os próprios religiosos têm mais do que cuidar. Sou do tempo em que a maioria dos cinemas nem pensava em exibir outra coisa além de "O Manto Sagrado" ou produções italianas sobre a Paixão de Cristo.
De todo modo, o fenômeno das pautas previsíveis dificilmente será abolido no jornalismo. Um profissional experiente me transmitiu, certa vez, sua implicância particular: as reportagens televisivas sobre a chegada do inverno. A frase não muda: "É tempo de tirar os casacos e sobretudos do armário"... E tome imagens de uma "cidadã" abrindo o guarda-roupa. O tema é mais antigo do que a naftalina.
Editoria de Arte/Folhapress | ||
Mas também existem os clichês mais recentes. O mês de novembro traz um clássico: os atrasados do Enem. São as cenas invariáveis de desespero dos que veem as portas do local de prova se fechando bem à sua frente, com as lágrimas e as explicações que se conhecem.
Ainda que a cena seja igual, vou percebendo que o país dá sinais de ter mudado.
Todo guia turístico ou manual para estrangeiros concorda: pontualidade não é o forte dos brasileiros. Mesmo assim, a atitude diante dos atrasados do Enem já é outra.
Imagino que, até não muito tempo atrás, as antipatias gerais se voltassem contra a rigidez dos funcionários, que com precisão suíça trancam os portões no horário estipulado. Coitada da mocinha que se esfalfa! Pelo menos não é "caxias".
O sentimento é outro hoje em dia. Alguns pândegos resolveram montar o "Camarote do Enem" (há vídeos no YouTube). Diante da portaria da Uninove, em São Paulo, ficaram esperando os atrasados com churrasqueira, cadeira de praia e isopor de cerveja.
Um corredor de gozadores se formou, cantando com melodias de torcida futebolística a frase "e o portão fecho-o-ou". O espírito era cruel, sem dúvida, mas os atrasados no fim confraternizaram com quem os humilhava, bebendo e ensaiando alguns passos da dancinha.
Duas formas de "brasilidade", portanto. A antiga era adepta de menor rigidez e tendia à tolerância sentimental. A mais recente se coloca claramente em favor da lei e das autoridades, mas não dispensa a pagodeira no fim.
A mesma ambiguidade se revela nos comentários de Cauê Moura, cujo canal no YouTube conta com mais de 4 milhões de seguidores. Com barba de troglodita e uma veemência digna de Enéas, ele insulta os atrasados do Enem.
São "jumentos" e "têm de se f..." Uma mulher foi barrada porque tinha esquecido seu RG em casa. "Tem de ser muito buuuurra", triunfa o blogueiro.
Outro chegou de moto, cinco minutos antes do exame, achando que poderia estacionar dentro da faculdade. Cauê Moura reproduz em voz alta o raciocínio do infeliz, imaginando uma fala debiloide: "Dã, eu pensei que deixaavam...".
Vai usar a moto para trabalhar o resto da vida, fulmina o astro do YouTube. Mas não há propriamente raiva em sua violência. "Ah, quer dizer que no dia mais importante da sua vida escolar, no dia em que você vai decidir o seu futuro, você dormiu no ônibus e perdeu o ponto? Dia tranquilo esse seu, né? Jumeeento!"
No fundo, Cauê Moura é dos muitos que estão cansados de se apiedar de quem poderia ter sido um pouco mais responsável com os próprios compromissos. O curioso é que, neste caso, a atitude não se confunde com o tradicional discurso da direita. Ele defende os temas escolhidos para a redação do Enem.
No ano passado, a questão foi a da violência contra a mulher. Agora, os candidatos tiveram de escrever sobre intolerância religiosa.
Se alguém reproduzir o que ouviu de alguns pastores, vai zerar na prova, brinca o youtuber. Mais uma vez, ele dubla com voz de idiota os que reclamam do "progressismo" das questões: "Ué, então o que é que eu faço com o meu retrocesso?".
Cauê explode: "Enfia no meio do c..! Pega o seu preconceito e mete no brioco!". Bastante gordo e com risadas de ogro, ele faz um banquete com a burrice alheia.
Há atrasados e atrasados, certamente, no Brasil contemporâneo. Mas há sinais de ter-se esgotado o tempo da tolerância, ou pelo menos da timidez, com esse tipo da coisa.
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