Corria o mês de maio de 2015, quando o sr. Abraão Justino de Barros "adentrou" a casa de uma pessoa em Campo Grande (MS) e tentou roubar algumas peças de roupa, avaliadas em R$ 100.
Foi condenado. Um ano e quatro meses. A pena por tentativa de furto se agravou um pouco: o crime se torna "qualificado" porque houve "rompimento de obstáculo".
A defesa do sr. Abraão argumentou que o material roubado era insignificante. O Ministério Público, sempre atuante, pediu para que se mantivesse a pena do criminoso.
A defesa respondeu. Além de mínimo o prejuízo, não se configurou risco ou perigo para ninguém: o imóvel em que o sr. Abraão "adentrou" estava vazio. O Tribunal de Justiça do Mato Grosso absolveu o réu.
Mas o Ministério Público não desistia. O caso subiu para Brasília. O Tribunal Superior de Justiça foi acionado. A defesa, então, recorreu ao Supremo Tribunal Federal. O roubo das roupas caiu em mãos do ministro Gilmar Mendes –que deu um basta nessa história e reafirmou a insignificância de todo o caso.
Não é o único, infelizmente.
Jocimar Alves roubou, em 2001, 25 codornas poedeiras, avaliadas na época em R$ 62, 50. Em 2015, George Augusto Machado tentou furtar uma barra de chocolate de um quilo, no valor de R$ 23,05.
Recursos e mais recursos, do Ministério Público e da defesa, levaram essas bagatelas ao Supremo Tribunal Federal. Por sorte, caíram nas mãos daquele que é considerado, por muitos, o "absolvedor-geral da República" –o sempre detestado Gilmar Mendes. Vieram dele (e não duvido de que outros ministros apliquem o mesmo princípio) as decisões concedendo habeas corpus a esse tipo de réu.
Entrei em contato com a assessoria de Gilmar após ouvir entrevista dele no rádio. O jornalista estranhava, como todo mundo, o fato de tantas de suas decisões beneficiarem políticos acusados de corrupção.
O sentimento geral é de que a Justiça, em especial o Supremo, e mais especialmente ainda Gilmar Mendes, gosta de absolver os ricos e os importantes, deixando os pobres na cadeia. Ele rebate, dizendo que não para de absolver pobres. A imprensa é que não dá destaque a essas decisões. Por que, ministro? Ele provoca: "Porque a imprensa brasileira não gosta de pobre".
Volta-se contra os jornalistas, portanto, a acusação fácil que eles tantas vezes reproduzem ao falar mal da Justiça.
Gilmar tem razão. Os jornalistas também. Ignoramos, com certeza, casos como os de Abraão, George e Jocimar, exatamente pelos motivos que Gilmar invoca ao libertá-los: cometeram, se é que cometeram, crimes sem importância nenhuma.
Este argumento, contudo, não é suficiente. A notícia, no caso, não é a de que fulano roubou tijolos, chocolates ou codornas, mas sim a de que se gastam energias e verbas do Estado com bagatelas desse tipo.
A distorção é especialmente grave nos dias que correm, porque a tendência de todo mundo é a de enaltecer o Ministério Público, e de torcer pelas condenações mais severas e irrestritas.
O que é certo, quando se pensa na impunidade de tantos corruptos e grandalhões. Mas não é certo fechar os olhos para os possíveis exageros e manias dos acusadores.
Nada é simples quando se analisa uma questão concreta. O Ministério Público, nesses crimes insignificantes, argumenta com algum bom senso também. Está certo, o sujeito roubou só uma barra de chocolate. Mas, se ele faz isso toda semana, é preciso que tenha alguma punição.
Em termos jurídicos, a reincidência faz com que deixe de valer o princípio da insignificância. Alguns juízes adotam a tese; outros, como Gilmar Mendes e Celso de Mello, resistem. Bem ou mal, eis o Supremo absolvendo réus pobres –em boa quantidade. Isto encerra o debate?
Não. Estatisticamente, há muito mais pobres do que ricos. Se o Supremo absolve cinco pobres e um rico, a balança ainda é favorável aos ricos. A questão seria saber quantos advogados de ricos chegam ao Supremo, e quantos advogados de pobres –não por culpa do STF– morrem na praia.
Já se concedeu, lembra Gilmar, habeas corpus a um réu que, no desespero, mandou uma carta ao STF, sem advogado nenhum.
Moral da história: a sociedade é injusta. Resultado natural: a temporada de caça aos bodes expiatórios, chamem-se Janot, Gilmar, imprensa ou advogados, prossegue.
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