Marcelo Coelho

Mestre em sociologia pela USP, é autor dos romances “Jantando com Melvin” e “Noturno”.

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Marcelo Coelho

Novo esporte radical, 'rooftopping' não é só produção de adrenalina

Crédito: André Stefanini/Folhapress

Perguntaram a um alpinista inglês, George Mallory (1886-1924), por que ele queria tanto escalar o monte Everest. Sua resposta ficou famosa: "Porque ele está lá".

Volto a pensar na frase de Mallory ao ver as proezas dos atuais alpinistas urbanos de São Paulo. O filmeto, com menos de 5 minutos, está no UOL: procure por "Risco nas Alturas", ou por Luis Kawaguti, autor da reportagem.

Pessoas como Rodrigo Oliveira, 23, praticam o "rooftopping", que é o esporte de subir no telhado de prédios. Não para pichar: fotografam, no máximo, o que veem lá de cima.

E não é propriamente um alpinismo urbano. Trata-se de "parkour" em grandes alturas. Ou seja, você tenta fazer piruetas e saltos arrojados na borda –repito, na borda– de prédios altíssimos.

Esses jovens andam sobre canos como se fossem uma corda bamba; penduram-se na fina borda de algum parapeito derruído; atravessam avenidas andando pelo corrimão de uma ponte ainda em obras.

É pela adrenalina, diremos –se quisermos uma explicação menos enigmática do que a de George Mallory. Espero pelo dia em que vendam adrenalina nas farmácias. Mesmo quando isso ocorrer, imagino que práticas radicais como o "rooftopping" continuarão existindo.

A adição química tem, naturalmente, seu papel. Mas o desafio é de outra ordem, e não penso só no famoso (e a meu ver inconvincente) "instinto de morte" freudiano.

Ainda que esteja brincando com a morte, o alpinista urbano não quer morrer, nem mesmo (acho) de um ponto de vista inconsciente.

Quer sentir-se vivo, com mais intensidade do que a concedida pelo seu cotidiano. Sua rotina é que, talvez, seja mortal. Sei do que estou falando. Avesso a riscos, nunca subi numa motocicleta, abomino montanha-russa, e sou dos que, na praia, preferem quando chove, para poder ficar em casa. O único perigo que enfrento, de vez em quando, é o de comer ostras –molusco com o qual, pela inércia, me identifico.

É em mim, não neles, que o instinto de morte prevalece. Tomar banho de chuveiro, em vez de entrar numa banheira, já me parece sinal de extrema disposição física. Dissolvo-me, quase a caminho do ralo, mal segurando um vago sabonete. Eles, com os músculos retorcidos como cordas, cravam as mãos no concreto puro. Eles vencem: eu desisto.

O prédio abandonado, como o Everest, "está lá". Diante desse fato, penso apenas: "Que fique". O alpinista, o "rooftopper", não se contenta com isso.

E há dois momentos, imagino, nessa inquietação. Quem diz que "o Everest está lá" diz isso, primeiramente, porque o enxerga ao longe, aqui de baixo. A natureza de alguma forma o interpela. Aquela cordilheira não pode ser, pensa ele, só uma instância muda do "estar aí".

Não existe por acaso. Existe para que eu faça alguma coisa com ela. O sentido da montanha está no que ela pede de mim. Feita a escalada, a perspectiva se inverte: a montanha sou eu; vejo o que ela vê. Estou, como ela, sozinho no céu.

Minha consciência, afastada de tudo, sobrevive: esgotado o limite possível do corpo, eis que sou puro espírito, acima do mundo; o ar que respiro não pode ser mais rarefeito e puro. Para um alpinista como Mallory, o enfrentamento era duplo: com a mudez da natureza e com o tumulto dos humanos.

O "rooftopper" talvez sinta uma coisa diferente. A cidade, construção humana, é que se mostra sem sentido. Um prédio enorme foi abandonado; por quê? E, mesmo que o habitem, não será inútil o seu teto, cheio de calhas, canos e entulhos?

As vísceras do edifício estão a céu aberto. Expostas, ninguém as vê. Ele chega lá. Encontra, absurdamente, um modo de usá-las. O vazio, ocupou-o –ainda que por minutos.

Não são minutos: é sua vida toda que se põe ali, em risco. Entrega-se ao perigo extremo para dotar de algum sentido aqueles topos e paredes. Outros dirão que é loucura. Dizem isso dos artistas também. O rooftopper não se importa.

Quanto a mim, afundo-me na poltrona, e lhe faço um aceno de longe: sobreviva, meu irmão.

P.S. Luli Penna, que ilustrou com delicadeza esta coluna por muitos anos, parte para outras paragens como quadrinista. Aos 28 anos, André Stefanini é pós-graduado em comunicação visual e ilustração em Barcelona e foi um dos classificados em recente concurso promovido pela Folha. Que seja bem-vindo.

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