O psiquiatra Luís Fernando Tófoli, professor da Unicamp e membro do Conselho Estadual de Políticas sobre Drogas de São Paulo (Coned), chama a atenção para manifesto da Associação Psiquiátrica Americana (APA) acerca da questão racial.
A corporação parte da raça para defender nada menos que a descriminalização do uso de drogas. O texto afirma que a APA "reconhece que a política de drogas dos EUA produziu resultados profundamente desiguais entre grupos raciais, discriminação racial por agentes da lei e perseguição de comunidades".
"No mínimo, políticas que resultam em taxas desproporcionais de prisão e encarceramento (...) devem ser eliminadas em favor de tratamento e descriminalização do uso de drogas."
Está lá, no documento "Declaração de Posição sobre Impacto do Racismo Estrutural no Uso de Substâncias e nos Transtornos de Uso de Substâncias", aprovado em julho. Leitura instrutiva para brasileiros, sobretudo os psiquiatras daqui, encharcados como estão da propaganda obscurantista na era Bolsonaro.
Nos EUA, 12,4% dos habitantes se declaram negros. Na população carcerária de cerca de 2 milhões de pessoas, entretanto, essa parcela triplica para 38,4%.
No Brasil, são negras 67,5% das 815.165 pessoas que estavam encarceradas em 2021. Na população geral a parcela é de 56%, ou seja, há também aqui evidente viés racial nas polícias e na Justiça.
Em nosso país, 84% das vítimas de letalidade policial são negras. Pretos e pardos enfrentam probabilidade quádrupla de morrer pelas mãos de agentes da lei na comparação com brancos (taxas respectivamente de 4,5/100 mil e 1/100 mil).
Racistas convictos, como os instalados no governo federal, concluirão que tais números decorrem de haver algo inerentemente depravado na população negra. Por essa lógica desumanizante, discriminação e condições socioeconômicas desfavoráveis nada teriam a ver com isso.
Precisa ser muito obtusa a pessoa para não enxergar que a violência contra negros começou com a escravidão e continua hoje, mantendo-os subalternos e negando-lhes até a dignidade de pessoa. Para quem necessita de estatísticas, eis mais algumas.
Brancos ganham 69,3% mais que negros. Dos pretos e pardos, 32% são pobres, contra 15% de brancos. Entre maiores de 25 anos, 25% dos brancos têm diploma superior, diante de meros 11% dos negros.
"O fato de a APA ter reconhecido o viés racial da guerra às drogas em sua faceta legal e médica é importantíssima", diz o psiquiatra Tófoli, "incluindo a conclamação pela descriminalização do porte de drogas para uso pessoal."
Descriminalização e não legalização, ressalve-se. Em outras palavras, o primeiro passo é deixar de encarcerar quem apenas usa drogas. A política para a área deixaria o setor criminal do poder público e passaria a ser alçada da saúde.
Essa mudança legal aconteceu em Portugal, por exemplo, já no começo do século. No Brasil, destaca Tófoli, a sociedade civil ainda espera que algum presidente do Supremo Tribunal Federal demonstre coragem de pôr a questão em pauta, coisa que Luiz Fux não se dignou fazer.
A posse de pequenas quantidades de maconha foi nominalmente despenalizada no Brasil, mas a lei não pegou, como se diz. Juízes seguem enquadrando jovens usuários como traficantes, em sua maioria negros e pobres, enquanto os brancos se safam.
"Nossa atual Associação Brasileira de Psiquiatria, entremeada no reacionarismo do governo federal, está atrasada ao não reconhecer o impacto desproporcional que as políticas públicas para drogas têm sobre os grupos vulneráveis, especialmente as pessoas negras", aponta Tófoli. "É preciso mudar esse cenário."
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