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marcelo leite

 

11/08/2010 - 00h02

Na sala com Alzheimer e Huntington

Fãs da série "House" na TV paga reviram os olhos em tédio quando os doutores Chase, Foreman, Treze ou Taub --auxiliares do iracundo House-- sugerem realizar mais uma punção lombar para firmar um diagnóstico. Não passa um programa sem que cogitem espetar uma agulha entre as vértebras do paciente para retirar e examinar uma amostra do liquor, fluido que envolve e protege o sistema nervoso, inclusive a medula espinhal.

Agora eles poderão acrescentar mais uma hipótese, o mal de Alzheimer, à lista tenebrosa do que é possível detectar com o exame do líquido cefalorraquidiano. Surgiu um teste que permite dizer, com grande certeza, se alguém vai desenvolver a doença que começa atacando a memória e pode acabar numa demência triste e arrasadora.

Atualmente, só é possível determinar com segurança se uma pessoa teve Alzheimer depois que ela morre, dissecando seu cérebro para verificar a presença das placas de proteínas que o destroem. O novo teste consegue detectar a presença dessas proteínas no liquor.

O exame inovador representa uma faca de dois gumes, porém. Possibilita predizer a degeneração do cérebro, mas não há como impedi-la. Alzheimer prossegue sem cura.

O estudo que comprovou a eficácia do novo exame por punção lombar saiu ontem no periódico médico "Archives of Neurology", ligado à Associação Médica Americana (EUA). Foi a segunda notícia mais destacada na primeira página do diário "The New York Times", e com razão.

Não é todo dia que se desenvolve teste diagnóstico confiável para uma moléstia que aflige uns 35 milhões de pessoas no mundo. O feito foi realizado pelo grupo de John Trojanowski, da Universidade da Pensilvânia, em Filadélfia. Contudo, em entrevista à repórter Gina Kolata, do "NY Times", Trojanowski lançou a pergunta incômoda: "Quão cedo você vai querer rotular as pessoas?"

Receber o diagnóstico de uma doença incurável soa como uma sentença à morte, ou à vida sem perspectiva. Muita gente pode preferir viver sem a informação.

É essa a escolha de muitos filhos de portadores da doença de Huntington, ou coreia de Huntington ("coreia" é uma palavra antiga para designar danças, com a mesma raiz de "coreografia"; em medicina, é usada para síndromes que ocasionam movimentos involuntários e rápidos).

Existe um teste de DNA para predizer com segurança se uma pessoa carrega o gene da doença de Huntington, descoberto em 1993. O problema é que, como no caso de Alzheimer, não há cura para essa degeneração do sistema nervoso central. E ela ataca o portador entre os 30 e os 50 anos.
A dra. Treze, de "House", escolheu não saber. Prefere conviver com a dúvida sobre os 50% de chance de ter herdado o gene da mãe.

Alzheimer é um mal menos cruel, do ponto de vista da idade. Há casos precoces, por volta dos 50 anos, mas o mais comum é manifestar-se depois dos 65. Após os 85, a demência pode afetar mais de um terço da população que tiver sobrevivido à infinidade de outros males a rondar o corpo envelhecido.

No limiar dos 53, com vista e memória começando a cansar, um colunista míope pode encarar como boa a notícia do teste de Trojanowski. Se chegar a ser rotineiramente oferecido em clínicas e coberto por seguros de saúde, consideraria a sério a hipótese de realizá-lo --para melhor conhecer o que o aguarda em matéria de decrepitude.

Se tivesse um parente com Huntington, contudo, nunca teria feito a investigação genética. Uma coisa é saber, aos 20 ou 30 anos, que em uma década estaria reduzido ao espectro dançante da pessoa que foi. Outra, bem diversa, é tentar preparar-se, sem muita esperança, para o que a velhice lhe reserva.

"La vecchiaia è brutta", dizem os italianos, com sabedoria. Só não vê quem não quer.

O leitor, claro, terá outras opiniões a respeito. Essas escolhas todas são muito pessoais. Em princípio e em geral, ter informação é melhor que não ter, mas se podem imaginar muitas exceções à regra.

Ambos os exames, por fim, devem estar disponíveis, pagos pelos planos de saúde, para todos que tenham razões para se acreditar portadores não sintomáticos. Ao médico cabe só a obrigação de esclarecer os pacientes. Nunca, jamais, a decisão sobre virem a conhecer suas chances na loteria biomolecular que chamam --chamamos todos-- de própria vida.

marcelo leite

Marcelo Leite é repórter especial da Folha, autor dos livros 'Folha Explica Darwin' (Publifolha) e 'Ciência - Use com Cuidado' (Unicamp). Escreve aos domingos.

 

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