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marcelo leite

 

01/12/2010 - 07h23

Clima e saúde andam juntos

A 16ª Conferência das Partes da Convenção da ONU sobre Mudança do Clima (COP-16) começou anteontem em passo de cágado, no México. Lamento predizer que será mais um fracasso na série de COPs que vem claudicando desde Bali (2008) e Copenhague (2009).

Lamento mesmo: preferiria mil vezes morder a língua e ver Cancún produzir um acordo global de redução de emissões de gases do efeito estufa, com força jurídica e maior ambição que o Protocolo de Kyoto. São múltiplas as indicações, porém, de que isso não vai acontecer.

O ideal seria um compromisso capaz de restringir o aquecimento médio da atmosfera a 1,5°C ou no máximo 2°C neste século, pois esquentar vai de qualquer jeito (ou melhor, já esquentou, 0,7°C). Considera-se que esse é um limite razoavelmente seguro, dentro do qual seria possível adotar medidas de adaptação de custo não proibitivo.

Não vou incomodar o leitor desfiando o rol de razões conspirando contra um novo protocolo do clima. Nem com os detalhes ultraburocráticos, ultratécnicos e ultrachatos da negociação internacional, que se arrasta desde 1992. Melhor falar de coisas mais concretas relacionadas com o clima, como a saúde --a sua, a minha, a nossa saúde.

Chegou às mãos da coluna um documento interessante do Painel Médico Inter-Academias, que em inglês atende pela sigla Iamp. Trata-se de uma "Declaração sobre os Co-Benefícios da Saúde para Políticas de Combate às Mudanças Climáticas", um título que decerto não foi formulado por jornalistas nem publicitários. Mas vale a pena ler, o que você pode fazer, em português, aqui.

É bom inverter o ponto de vista, muitas vezes. Neste caso, o que o Iamp fez --com a participação da Academia Brasileira de Ciências e 37 associações congêneres-- foi perguntar se medidas de contenção de emissões de gases do efeito estufa teriam um efeito significativo sobre a saúde pública. E, em caso, afirmativo, se tal benefício ajudaria a cobrir o custo de adoção das medidas. Na realidade, mais que perguntar, o documento afirma que é esse o caso.

Exemplo: um programa de dez anos para disseminar 150 milhões de fogões de baixa emissão na Índia, em substituição aos fogões a lenha e fogueiras tradicionais, poderia evitar 2 milhões de mortes prematuras no período. A substituição reduziria a presença, no ambiente doméstico, do poluente carbono elementar (fuligem). É a principal causa da doença pulmonar obstrutiva em mulheres indianas, além de favorecer infecções do trato respiratório inferior em seus filhos.

Um quarto das emissões mundiais de dióxido de carbono (CO2) provém dos meios de transporte. Se mais pessoas fizerem percursos a pé ou de bicicleta, nas cidades com ambiente adequado para isso, não só diminuirá a poluição como sua saúde melhorará. Calcula-se que um programa de estímulo à "mobilidade ativa" em Londres diminuiria em 10% a 20% as doenças cardíacas, em 12% a 13% o câncer de mama, em 8% a demência senil e em 5% a depressão.

Depois do dióxido de carbono, um gás importante do efeito estufa é o metano, produzido em quantidade significativa nos arrozais alagados e no rúmen do gado bovino (por favor, chega de piadas sobre arrotos etc. de bois). O Brasil, que tem baixíssima ocupação de pastos em sua atrasada pecuária extensiva (menos de uma cabeça por hectare, ou 10 mil m²). Por aqui, uma pequena melhora na produtividade e no manejo já ajudaria a reduzir as emissões.

Imagine agora que, além de modernizar a pecuária nacional, o consumo de carne fosse diminuído. "Uma redução de 30% na ingestão de gordura saturada de origem animal tem o potencial de redução de 15% das doenças cardíacas em Londres e 16% em São Paulo", informa o manifesto do Iamp.

A tese mais audaz do painel é que os benefícios para a saúde de medidas pró-clima, se devidamente quantificados, podem superar o próprio custo de sua adoção. É um raciocínio recorrente, que inspirou, entre outros, o célebre estudo de 2006 coordenado por sir Nicholas Stern para o governo britânico, Stern Review : o custo da inação diante da mudança do clima será maior que o de combatê-la.

O documento do Iamp resgata um estudo publicado no periódico médico "The Lancet", em 2009, por equipe liderada por Andy Haines, da London School of Hygiene and Tropical Medicine. O grupo conclui que, para cada tonelada de CO2 economizada, os ganhos de qualidade do ar --e, portanto, para a saúde humana-- representariam um benefício estimado em US$ 49, na média.

É verdade que o intervalo da estimativa é amplo demais, vai de US$ 2 a US$ 196. Tamanha dispersão do valor decorre, provavelmente, da incerteza e das muitas premissas adotadas, uma característica comum das projeções relacionadas com mudança climática.

Importa, porém, que o valor seja positivo. Em outras palavras, algumas medidas de contenção de gases do efeito estufa, senão todas, ou a maioria, beneficiariam tanto o clima quanto a saúde e não teriam o custo astronômico alegado por seus adversários.

O que mais se poderia desejar?

marcelo leite

Marcelo Leite é repórter especial da Folha, autor dos livros 'Folha Explica Darwin' (Publifolha) e 'Ciência - Use com Cuidado' (Unicamp). Escreve aos domingos.

 

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