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marcelo leite

 

22/12/2010 - 07h05

Grão de sal na biologia sintética

No campo das biotecnologias, as modas prometeicas se sucedem com promessas renovadas de soluções para todos os problemas do mundo --ou quase.

A genômica resolverá o problema do câncer e da AIDS. A transgenia salvará a agricultura da insustentabilidade e a humanidade, da fome. A nanotecnologia criará veículos perfeitos para ministrar remédios teleguiados, que só alvejarão tecidos e órgãos doentes.

A biologia sintética, última promessa, se propõe a solucionar nada menos que os maiores problemas ambientais da Terra: energia (isto é, aquecimento global) e poluição.

Os mais precavidos, contudo, manterão um pé atrás com ela. Se não por outra razão, pelo fato de contar entre seus campeões com ninguém menos que J. Craig Venter, antes o prodígio da genômica. Venter, depois de bater o Projeto Genoma Humano chapa-branca com sua empresa Celera, partiu "para novos desafios", como se costuma escrever em patéticas mensagens de despedida.

Seu grupo construiu a primeira "célula sintética" ao retirar o genoma de uma bactéria e dotar a carroceria celular restante de um novo "motor" genético, a coleção de genes de outra bactéria, mas todos eles construídos por meios artificiais. O híbrido, anunciado em maio, provou-se funcional ao reproduzir-se, característica fundamental dos seres vivos.

O objetivo final de Venter é projetar organismos com funções específicas, para atender necessidades humanas. Por exemplo, bactérias ou algas fotossintetizadoras que produzam combustíveis líquidos para substituir os de origem fóssil (derivados de petróleo). Ou, então, microrganismos especializados em descontaminar áreas poluídas --alguém aí falou em derramamento de petróleo?

Não são más ideias, de todo. Se você não tem problemas, digamos, ideológicos com esse tipo de manipulação da vida, assim como temerários do passado não os tiveram na hora de fazer as primeiras cirurgias e vacinas, admitirá que são apostas interessantes. Mas até mesmo os jogadores mais compulsivos tentarão diminuir os riscos de sua atividade.

Uma das pragas da biologia são os efeitos não pretendidos. Sabe aquela história de coelhos na Austrália?

Não é fantasia imaginar que as superbactérias de Venter, se um dia de fato forem desenvolvidas com a precisão pretendida (um imenso "se"), escapem para o ambiente e se tornem um problema ecológico. Ou que vírus engenheirados se tornem uma ameaça à saúde. Ou que algas projetadas colonizem as águas de que dependemos. Vai que...

Se fosse no Brasil, os ideólogos de plantão a favor de qualquer coisa que mereça o rótulo de "alta tecnologia" descartariam de antemão qualquer receio com os riscos da nova forma de manipulação.

A Presidência dos Estados Unidos, onde não se dá ponto sem nó, preferiu encomendar à Comissão Presidencial para o Estudo de Questões Bioéticas uma apreciação dos problemas envolvidos. O resultado se encontra no relatório "Novas Direções - A ética da biologia sintética e das tecnologias emergentes" (que pode ser lido aqui, em inglês).

"Neste estágio precoce de desenvolvimento, o potencial para dano por meio de liberação inadvertida no ambiente de organismos ou outros materiais bioativos produzidos pela biologia sintética requer salvaguardas e monitoramento", recomenda o texto.

"O Gabinete da Presidência deveria determinar uma revisão continuada da capacidade de multiplicação de organismos sintéticos no ambiente natural e identificar, na medida do necessário, mecanismos confiáveis de contenção e controle. Por exemplo, 'genes suicidas' ou outros tipos de gatilhos autodestruidores poderiam ser considerados, de modo a impor um limite a seu período de vida. Alternativamente, organismos engenheirados poderiam ser construídos para depender de componentes nutricionais ausentes do ambiente fora do laboratório, tais como novos aminoácidos, e assim ficar sob controle no caso de um escape."

Tem cheiro de princípio de precaução. Em algumas culturas científicas subdesenvolvidas, contudo, isso é considerado um mau odor. A tendência, nesses casos, seria tapar os narizes (e os olhos) do público deixando tudo nas mãos dos profissionais de uma Comissão Técnica Nacional de Biologia Sintética (CTNBioS).

P.S.: Por motivo de viagem, não haverá coluna nas duas próximas quartas-feiras

marcelo leite

Marcelo Leite é repórter especial da Folha, autor dos livros 'Folha Explica Darwin' (Publifolha) e 'Ciência - Use com Cuidado' (Unicamp). Escreve aos domingos.

 

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