Economista, diplomata e cientista social, dirige o BRICLab da Universidade Columbia em NY, onde é professor-adjunto de relações internacionais e políticas públicas. Escreve às quartas.
De superpotência a superpoder
A intervenção russa na Ucrânia mexeu com a memória afetiva. Muitos ensaiaram identificar na aventura de Putin a volta da ordem bipolar.
Para haver Guerra Fria, contudo, precisamos de embate ideológico. Onde enxergar distintas visões de mundo a partir do jogo de interesses na Crimeia?
É fato que George Kennan, diplomata americano na capital russa nos anos 1940, argumentava que a cooperação socialista não serviria como bússola para o comportamento internacional dos soviéticos.
Os inquilinos vermelhos do Kremlin reproduziriam a mentalidade dos antecessores czaristas: decorariam a imensa fronteira com "Estados-satélites" e "esferas de influência".
Ainda assim, apesar de toda a aridez geopolítica, a divisão leste/oeste era também um conflito de ideias, de diferentes concepções de produção, democracia e liberdades individuais. Por isso Churchill, ao denunciar em 1946 que "uma Cortina de Ferro descera sobre a Europa", ajudava a inventar a Guerra Fria. Mesmo disputando o mais realista dos jogos, o alto Politburo instruía-se de uma visão ideológica do mundo e para o mundo.
Para o Ocidente, tratava-se de "conter" a expansão soviética. Para os comunistas, ampliar cooperação com insurreições à esquerda em qualquer parte do planeta e aguardar o colapso capitalista inevitável.
Para "não-alinhados", era oscilar pendularmente em busca de recompensas pontuais. Conflitos em países de pouca relevância econômica, como Cuba, Angola ou Vietnã, adquiriam dimensão global.
No Ocidente, a Guerra Fria gerou sovietólogos, "Doutrina de Contenção", "Teoria do Dominó", e complexa rede de diplomacia, defesa e espionagem –além da própria Otan. Rastro de desemprego e irrelevância para uma série de profissionais e instituições seguiu-se ao esgotamento do conflito bipolar.
Já o fim do comunismo como vetor global desferiu, sobretudo nos russos, golpe em sua vaidade e sentido de propósito. Havia um sentimento de pertença repleto de significado: a certeza de estar do lado certo da história. O próprio Putin referiu-se ao esfacelamento da União Soviética como "maior catástrofe geopolítica do século 20".
Hoje, na crise ucraniana, não há embate entre ideologias –e sem elas, a Guerra Fria não volta mais. A investida de Putin na Crimeia não é prelúdio de ingerências na América Latina, na África ou no Sudeste Asiático.
A presente crise na Europa Oriental não confronta, portanto, distintas visões de mundo, apenas diferentes interesses nacionais definidos em termos de poder. Quando o G7 ameaça Moscou com sanções, não o faz em antítese à ideologia, mas ao poderio russo.
Por isso, vozes do realismo político, como as de Zbigniew Brzezinski e Henry Kissinger, têm soado tão forte na interpretação da atual crise. O poder, enfim, não acabou.
A Rússia, sem projeto global, economia dinâmica ou discurso ideológico, seguramente não é mais uma superpotência. No entanto, suas robustas forças convencionais e pesado arsenal nuclear ainda fazem dela um superpoder.
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