Marcos Troyjo

Diplomata, economista e cientista social, é diretor do BRICLab da Universidade Columbia

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Marcos Troyjo

A Argentina de Macri é ruim para o Brasil, e isso é bom

O resultado do pleito argentino neste último fim de semana é mais um golpe duro nas apostas que a política externa brasileira vem fazendo nos últimos 12 anos.

O kirchnerismo, respeitadas as peculiaridades históricas e biográficas de cada doutrina populista e seus protagonistas, foi um primo argentino do lulopetismo. E, em termos de cosmovisão e papel do Cone Sul no mundo, ambos os movimentos produziram acervos de política econômica, industrial, comercial –e de diplomacia– bastante semelhantes.

Tanto em Buenos Aires quanto em Brasília, passou-se ao largo da macroeconomia assentada na responsabilidade fiscal.

Ambos os países mantiveram elevadas barreiras ao seu mercado interno, privilegiando o sacrossanto "conteúdo local" à expensa das finanças públicas e do bolso do consumidor. Nada avançaram na costura de acordos comerciais com os mercados mais dinâmicos do mundo.

Ambos também refestelaram-se irresponsavelmente na explosão das commodities. Pouco construíram em termos de competitividade nos setores mais intensivos em tecnologia, a partir dos recursos incrementais da venda de matérias-primas. Embarcaram na suposta solidariedade latino-americana e numa versão "retrofit" da diplomacia Sul-Sul, para legitimar seu antiamericanismo e suas predileções terceiro-mundistas.

Assim, cabe reconhecer que Argentina e Brasil foram assombrados nestes anos recentes por três versões contemporâneas de antigos fantasmas. O nacional-desenvolvimentismo, a substituição de importações e a política externa "independente'.

Tudo isso num mundo em que despontam como megatendências a proliferação de acordos plurilaterais de comércio, as redes globais de produção e uma ênfase das diplomacias econômicas no tema da "interdependência'.

INFLEXÃO

Durante toda a campanha que o levou à Casa Rosada, e mesmo em seus primeiros pronunciamentos após o triunfo, Mauricio Macri sinaliza uma marcada inflexão para seu país.

Na "nuvem" de suas prioridades, configuram-se temas como a denúncia do status da Venezuela como "democracia" no âmbito do Mercosul. Isso isola ainda mais as ações e discursos brasileiros, que têm demonstrado grande elasticidade moral, sempre de modo a acomodar desígnios das lideranças chavistas.

Aparece também a normalização do relacionamento de Buenos Aires com a comunidade financeira internacional e também com Washington, num movimento que potencialmente pode diminuir ainda mais a projeção dos interesses brasileiros não apenas na Argentina, mas em toda a América do Sul.

Além disso, tudo que Macri tem afirmado sobre a crescente –e impressionante– influência chinesa na Argentina vai no sentido de "pragmatizar" o intercâmbio com Pequim. O "valor" da Argentina como parceiro só tende a aumentar –aos olhos chineses– se Buenos Aires também encontrar meios de satisfazer suas necessidades junto a potências ocidentais, particularmente os EUA.

Macri também aventa não somente agilizar a participação argentina nas tratativas Mercosul-União Europeia (UE), mas também negociar vínculos com a Aliança do Pacífico (aliança composta pelas economias de México, Colômbia, Peru e Chile). Nesses quesitos, a diplomacia de Lula e Dilma toma duas bolas nas costas.

Por um lado, perde o "álibi" argentino como desculpa a explicar a razão de as negociações com a UE estarem emperradas há 15 anos. O próprio Brasil terá de apressar-se em fazer a lição de casa liberalizante –que sempre pareceu "protelável", dada a ojeriza de Buenos Aires por acordos de comércio internacional.

Por outro, se a Argentina buscar um voo solo em sua aproximação com o bloco do Pacífico, fará com que o Brasil tenha de engolir sua própria retórica "mercosulista". Quantas não foram as vezes em que ouvimos o Brasil argumentar não ter buscado individualmente acordos com outros países ou blocos porque se via obrigado a privilegiar uma negociação a partir da plataforma do Mercosul?

É, ainda, de toda probabilidade que a nova diplomacia do Palácio San Martín sob a administração Macri não aloque capital diplomático para agremiações como a Unasul, o que também enfraquece o "multilateralismo latino-americano" esposado com tanto entusiasmo ideológico pelo Brasil.

OBSTÁCULOS

Para que Macri possa levar adiante essa dramática reorientação de suas estratégias nacionais, terá de transpor ao menos dois obstáculos de imensa complexidade.

Ele terá de equacionar a questão da dívida argentina com os pejorativamente denominados "fundos abutres". Um final feliz para essa história ajudaria a afastar o país do atual marasmo. E, no limite, deixaria a Argentina com um passivo externo relativamente pequeno e de perfil de maturação satisfatório –além de irrigar o país com sua volta aos mercados globais de crédito.

Outra grande barreira é a difícil implementação de políticas públicas modernizantes e atualização institucional numa sociedade infestada por populismo, má gestão econômica e elites disfuncionais há pelo menos um século.

Por mais desafiador que o caminho à frente se mostre, a Argentina de Macri desgarra-se da visão de mundo compartilhada pelos Kirchner e por Lula-Dilma.

O fim da Argentina "companheira" é, portanto, uma má notícia para a diplomacia lulopetista. E isso pode ser uma bênção disfarçada.

Nos anos 1980, Argentina e Brasil sucediam-se em "efeitos Orloff" trágicos. Crises econômicas em um prenunciavam fenômenos semelhantes no outro.

Agora, o advento de uma Argentina mais conectada ao mundo será ótimo para o país de Macri. E, se tal efeito Orloff se repetir, isso também seria muito bom para o Brasil.

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