Foi repórter e editora-adjunta de "Esporte". Cobriu a Olimpíada de Pequim-2008 e de Londres-2012, os Jogos Pan-Americanos do Rio-2007 e Guadalajara-2011.
O limpador de privadas
Na pequena vila de Kaptagat, no Quênia, a poeira sobe enquanto as pernas velozes dos corredores rasgam a paisagem antes mesmo de o sol nascer. É essa a rotina de um grupo de jovens atletas que sonham dar sequência ao sucesso dos quenianos nas provas de longa distância.
Findo o treino, todos voltam para o alojamento. Uns vão comprar comida, outros cuidam do jardim e há sempre aqueles escolhidos para limpar os banheiros. Ninguém escapa das tarefas. Nem Eliud Kipchoge.
Um olhar mais atento, no entanto, percebe que ele é diferente. Mais velho, 31 anos, divide com os mais novos sua experiência. Não só isso: é o exemplo, o ídolo, aquele que todos querem alcançar. Kipchoge é hoje um dos melhores maratonistas do planeta. Acaba de ganhar o bicampeonato em Londres, sagrando-se o corredor mais veloz todos os tempos naquele percurso –2h03min05s, apenas 8 segundos acima da melhor marca mundial da maratona. Já venceu em Berlim, Chicago, Roterdã e Hamburgo e é um dos favoritos ao pódio na Rio-2016.
Justin Tallis/AFP | ||
O queniano Eliud Kipchoge comemora vitória na maratona de Londres |
O que ele vive no Quênia é mais ou menos como se Neymar morasse em uma república com os garotos das categorias de base do Santos e também limpasse as privadas.
O que Kipchoge faz ali? Ele escolheu treinar assim. O corredor tem uma casa boa, comprada com parte dos muitos milhares de dólares que já ganhou competindo, onde mora com a família. Mas ele acredita que, se não fizer o sacrifício, não alcançará todo seu potencial como atleta, nem servirá de exemplo.
É quase um estranho numa época em que o dinheiro fala cada vez mais alto, e grandes atletas se transformam em celebridades, acumulando e ostentando fama e milhões. O queniano diz ter uma missão: obter grandes feitos no atletismo, tornar-se lenda e exemplo para as crianças. Quer viajar o mundo ensinando a importância de se exercitar.
Tem outro alvo também: o doping. O uso de substâncias proibidas tem sido a saída que muitos encontram para chegar ao alto nível. Ídolos e até países inteiros têm sido desmascarados e deixado máculas no esporte. O Quênia está sob vigilância e pode ser punido se não apresentar um plano de controle de dopagem efetivo. O atletismo do país é suspeito de acobertar casos e não ser rigoroso no controle do uso de substâncias proibidas.
Ser bem sucedido e provar que é limpo –diz ser submetido a mais de um teste por mês– são uma forma de Kipchoge também defender a tradição do atletismo do Quênia.
Neste país pobre reside um enigma difícil de decifrar. O mundo inteiro corre. Mas os quenianos correm melhor, apesar das condições econômicas adversas. O país é uma referência quando o assunto é corrida de longa distância.
Os bons resultados, no entanto, são frequentemente explicado por preconceitos. Fala-se em vantagens inatas, genéticas, ou em suspeita de trapaça e quase nunca na incrível capacidade de treinar dos quenianos. Kipchoge levanta poeira nas estradas de terra até três vezes por dia. Eles correm em grupos, com vários talentos competindo e se desafiando mutuamente, dia após dia. Para se destacar, é preciso ser craque.
Kipchoge é a mais nova cara desse sistema, o rosto que provavelmente veremos nos Jogos Olímpicos do Rio. Treinando e limpando privadas, ele nos dará uma chance pra admirarmos o fenômeno queniano no atletismo com outros olhos.
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