É comentarista chefe de Economia no jornal britânico 'Financial Times'. Participa do Fórum de Davos desde 1999 e do Conselho Internacional de Mídia desde 2006.
Escreve às quartas.
Casamento entre democracia liberal e capitalismo está sob ameaça
Carlo Allegri/Reuters | ||
Candidatura de Trump à presidência dos EUA pode ameaçar relação capitalismo e democracia |
O casamento entre a democracia liberal e o capitalismo mundial pode ser considerado duradouro? Os desdobramentos políticos no Ocidente —especialmente a candidatura de um populista autoritário à presidência da mais importante democracia— tornam essa questão mais importante.
Não se pode tomar como dado o sucesso dos sistemas políticos e econômicos que guiam o Ocidente e serviram como força de atração para boa parte do resto do planeta nas últimas quatro décadas.
Existe uma conexão natural entre a democracia liberal —uma combinação entre sufrágio universal e direitos pessoais e civis firmemente estabelecidos— e capitalismo, o direito de comprar e vender bens, serviços, capital e o próprio trabalho livremente. As duas coisas compartilham da crença em que as pessoas deveriam fazer suas próprias escolhas, como indivíduos e cidadãos.
Democracia e capitalismo compartilham da suposição de que as pessoas têm o direito de agência. Os seres humanos devem ser encarados como agentes, e não apenas como objetos do poder alheio.
No entanto, também é fácil identificar tensões entre a democracia e o capitalismo. A democracia é igualitária. O capitalismo é desigual, ao menos em termos de resultados. Se a economia soçobra, a maioria pode optar pelo autoritarismo, como aconteceu nos anos 1930. Se os resultados econômicos se tornam desiguais demais, os ricos podem transformar a democracia em plutocracia.
Historicamente, a ascensão do capitalismo e a pressão por um sufrágio cada vez mais amplo caminharam juntas. É por isso que os países mais ricos são democracias liberais com economias capitalistas, em maior ou menor grau. O crescimento bem distribuído da renda real desempenhou papel crucial em legitimar o capitalismo e estabelecer a democracia.
Hoje, porém, o capitalismo está enfrentando dificuldade muito maior para gerar avanços dessa ordem na prosperidade. Pelo contrário: as provas apontam para crescente desigualdade e desaceleração no crescimento da produtividade. Essa venenosa mistura torna a democracia intolerante e o capitalismo ilegítimo.
O capitalismo de hoje é mundial. Isso também pode ser encarado como natural. Sem restrições, os capitalistas não restringirão suas atividades a uma dada jurisdição. Se as oportunidades são mundiais, as suas atividades também o serão. O mesmo, como resultado, se aplica às organizações econômicas, especialmente as grandes companhias.
No entanto, como aponta o professor Dani Rodrik, de Harvard, a globalização restringe a autonomia nacional. Ele escreve que "democracia, soberania nacional e integração econômica mundial são mutuamente incompatíveis; podemos combinar quaisquer duas das três, mas as três jamais foram combinadas simultaneamente de maneira plena".
Se os países estiverem livres para impor regulamentações nacionais, a liberdade para comprar e vender através de fronteiras será reduzida. Alternativamente, se as barreiras forem reduzidas e a regulamentação harmonizada, a autonomia legislativa dos Estados será limitada. A liberdade do capital para cruzar fronteiras é particularmente propensa a restringir a capacidade dos Estados para impor tributos e regulamentação próprios.
Além disso, um traço comum aos períodos de globalização é a migração em massa. O movimento através de fronteiras cria o mais extremo conflito entre a liberdade individual e a soberania democrática. A primeira dispõe que as pessoas deveriam ser autorizadas a se mudarem para onde quiserem. A segunda diz que a cidadania é uma propriedade coletiva, à qual os cidadãos devem controlar o acesso.
Enquanto isso, as empresas consideram a liberdade de contratar livremente como inestimável. O fato de que a migração se tenha tornado a questão explosiva da política democrática contemporânea não deveria surpreender, portanto. A migração certamente causará fricção entre a democracia nacional e as oportunidades econômicas mundiais.
Considere o recente desempenho decepcionante do capitalismo mundial, não menos por conta do choque da crise financeira e de seu efeito devastador sobre a confiança nas elites encarregadas de nossos arranjos políticos e econômicos. Levando tudo isso em conta, a confiança em um casamento duradouro entre a democracia liberal e o capitalismo mundial parece injustificada.
O que poderia tomar seu lugar, nesse caso? Uma possibilidade seria a ascensão de uma plutocracia mundial, e com ela o fim das democracias nacionais. Como no império romano, as formas republicanas poderiam perdurar, mas sua substância desapareceria.
Uma alternativa oposta seria a ascensão de democracias não liberais ou de ditaduras plebiscitárias escancaradas, nas quais o líder eleito exerceria controle tanto sobre o Estado quanto sobre os capitalistas. É o que está acontecendo na Rússia e Turquia. O capitalismo nacional controlado substituiria, assim, o capitalismo mundial. Algo parecido aconteceu nos anos 30. Não é difícil identificar políticos ocidentais que adorariam seguir exatamente nessa direção.
Enquanto isso, aqueles de nós que desejam preservar tanto a democracia liberal quanto o capitalismo mundial precisam enfrentar questões sérias. Uma delas é determinar se faz sentido promover novos acordos internacionais que restrinjam severamente os poderes regulatórios nacionais, em defesa dos interesses das corporações existentes.
Minha opinião cada vez mais ecoa a do professor Lawrence Summers, de Harvard, que vem argumentando que "os acordos internacionais deveriam ser julgados não com base em o quanto é harmonizado, ou pelo número de barreiras removidas, mas sim pelo poder adicional que confiram aos cidadãos". O comércio internacional propicia ganhos, mas não pode ser promovido a qualquer custo.
Acima de tudo, se a legitimidade de nossos sistemas políticos democráticos precisa ser mantida, a política econômica precisa ser orientada a proteger o interesse dos muitos e não dos poucos; os cidadãos, a quem os políticos têm a obrigação de prestar contas, deveriam vir em primeiro lugar.
Se não o fizermos, parece provável que a base de nosso sistema político desabe. Isso não seria bom para pessoa alguma. O casamento entre a democracia liberal e o capitalismo precisa ser alimentado. Não deveríamos considerá-lo como imutável.
Tradução de PAULO MIGLIACCI
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