Martin Wolf

Comentarista-chefe de economia no Financial Times, doutor em economia pela London School of Economics.

Salvar artigos

Recurso exclusivo para assinantes

assine ou faça login

Martin Wolf

Chegamos ao final de uma era econômica, a da globalização liderada pelo Ocidente, e de uma era geopolítica –a do "momento unipolar" pós-guerra fria. Foi isso que argumentei quase um ano atrás. A questão era determinar se o mundo experimentaria um desmonte da ordem liberal criada pelos Estados Unidos depois da Segunda Guerra Mundial e decairia ao conflito e a uma reversão da globalização, ou se a cooperação ressurgiria.

Depois de quase um ano de Presidência de Donald Trump, devemos retornar a esse assunto. Para resumir, um desmonte se tornou ainda mais provável.

A experiência sublinhou o caráter especial da presidência de Trump. Ele viola a cada dia os comportamentos e as atitudes que o mundo espera de um presidente dos Estados Unidos.

Mas a exploração do cargo para ganho pessoal, indiferença à verdade, e ataque às instituições de uma república governada pela lei são exatamente o que deveríamos esperar. Uma democracia liberal só sobrevive se os participantes reconhecerem a legitimidade dos demais participantes. Um líder que apela aos seus subordinados que processem seus antigos adversários é um aspirante a ditador, e não um democrata.

Caráter é uma coisa; ações, coisa muito diferente. Até agora, Trump governou principalmente como um "plutocrata populista" republicano tradicional, adotando políticas públicas que favorecem os plutocratas e satisfazendo sua base enraivecida por meio de retórica agressiva. Mas as características pessoais dele ainda ficam visíveis, em sua atitude consistentemente mercenária com relação às alianças dos Estados Unidos e em suas visões estreitamente mercantilistas do comércio internacional.

A Presidência de Trump debilitou a causa da democracia liberal (a democracia que depende de um Estado de Direito no qual a lei seja neutra). Nos países ex-comunistas da Europa Oriental, o estilo de ditadura plebiscitária (definido eufemisticamente como "democracia não liberal") característico da Rússia de Vladimir Putin seduz admiradores e encoraja imitadores. A estreita vitória de Tayyip Recep Erdogan no referendo sobre poderes presidenciais levou a Turquia a avançar ainda mais nessa direção.

Mas o referendo sobre a saída britânica da União Europeia, em 2016, ainda não atraiu imitadores em outros países da união.

Na França, Emmanuel Macron conseguiu fazer com que a maré populista e xenófoba virasse. Mas as eleições da Alemanha debilitaram a capacidade do país para responder a Macron, e a eleição que está por vir na Itália pode se provar desordenadora não só para o país mas para a zona do euro como um todo.

O desdobramento político mais importante de 2017 pode ter acontecido na China. Lá, Xi Jinping aparentemente estabeleceu supremacia sobre o Partido Comunista e reforçou a supremacia do partido sobre o Estado, e a do Estado sobre o povo chinês. Dos homens fortes do planeta, ele emergiu como o mais forte - líder de uma superpotência em ascensão.

Assim, em 2017, a autocracia continuou em ascensão. A "recessão democrática" continua.

E o que aconteceu com a cooperação mundial, nesse meio-tempo? Quanto a isso também vimos desdobramentos significativos. Um foi a decisão de Trump de abandonar a Parceria Transpacífico, na qual aliados norte-americanos, especialmente o Japão, haviam investido muito, e de renegociar o Nafta (Acordo Norte-Americano de Livre Comércio). Outro foi a decisão do governo norte-americano de abandonar o acordo de Paris sobre o clima.

Na direção oposta tivemos a retórica de Xi, que parece pretender vestir o manto da globalização. Mas as forças opostas à cooperação avançaram no ano passado, como aconteceu com as forças opostas à democracia. Isso não surpreende quando o país que lidera o planeta tem um presidente que considera que conflito é a norma.

Esses desdobramentos precisam ser ponderados à luz de tendências de prazo mais longo. O ponto mais importante é que a posição dos países que hoje têm alta renda, embora continue enormemente poderosa, está em relativo declínio.

Os gastos militares da China estão crescendo acentuadamente, com relação aos americanos, ainda que continuem a equivaler a apenas 2% do PIB (Produto Interno Bruto) chinês. A parcela dos países de alta renda na produção mundial caiu em cerca de 20 pontos percentuais, do começo do século para cá, e sua parcela no comércio mundial de mercadorias se reduziu em 17 pontos percentuais.

Algumas das implicações dessas mudanças:

Para começar, esses desdobramentos políticos fragmentaram o Ocidente como entidade ideologicamente coerente. A cooperação estreita entre os países de alta renda surgiu em larga medida pela ação e pelo poder dos Estados Unidos. O centro desse poder atualmente repudia os valores e a percepção de interesses que sustentavam essa ideia. E isso muda praticamente tudo.

Segundo, os modernos ideais ocidentais de democracia e mercados mundiais abertos perderam prestígio e atrativos, não só nos países emergentes e em desenvolvimento mas nas nações de alta renda mesmas. Embora não tenha surgido um sistema econômico alternativo vitorioso, até agora, o apelo dos populistas xenófobos e dos autoritários (em muitos casos, dois traços encontrados em um mesmo líder) cresceu.

Terceiro, administrar a economia mundial, os bens comuns mundiais (especialmente o clima), e as questões de segurança exige cooperação entre os países de alta renda e os emergentes, especialmente a China. Os velhos dias de domínio pelos países de alta renda ficaram para trás. E obter cooperação entre países tão díspares é extremamente difícil.

Por fim, existe risco real de conflito entre os Estados Unidos e a China, como argumenta Graham Allison em seu livro "Destined for War". Os otimistas argumentarão (com razão) que a interdependência econômica e as armas nucleares fazem da guerra uma insanidade.

Os pessimistas responderão que a humanidade tem imensa capacidade de avançar aos tropeços rumo ao desastre. Talvez os generais que cercam Trump fracassem em mantê-lo sob controle. Talvez eles mesmos desejem promover uma guerra ruinosa com a Coreia do Norte.

Se 2017 expôs os desgastes geopolíticos do planeta, também viu uma saudável virada econômica positiva. Como essas coisas se relacionam? Esse será meu tópico na semana que vem.

Tradução de PAULO MIGLIACCI

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.