Martin Wolf

Comentarista-chefe de economia no Financial Times, doutor em economia pela London School of Economics.

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Martin Wolf

No ano passado, Donald Trump era um espectro assombrando o Fórum Econômico Mundial (WEF) em sua sessão anual em Davos. Este ano, pode ser que ele participe em pessoa. Caso isso aconteça, o encontro seria desconfortável, já que Trump rejeita os preceitos da ordem liberal internacional que seu país promoveu por mais de sete décadas. E esses são os valores que movem o WEF. São eles que fazem da ocasião algo mais que um fórum para os ricos e poderosos do planeta.

Como apontou John Ikenberry, da Universidade de Princeton, em artigo recente, "os Estados Unidos e seus parceiros construíram uma ordem internacional ampla e multifacetada, organizada em torno da abertura econômica, instituições multilaterais, cooperação para a segurança e solidariedade democrática". Esse sistema venceu a Guerra Fria. E sua vitória promoveu uma virada internacional rumo à democracia, na política, e ao livre mercado, na economia.

Hoje, porém, a ordem liberal internacional está doente. Como afirma a Freedom House, uma organização sem fins lucrativos bancada pelo governo dos Estados Unidos, em recente relatório, "a democracia está em crise".

Pelo 12º ano consecutivo, os países que sofreram recuos em suas liberdades democráticas superam em número aqueles que as viram avançar. Estados que uma década atrás pareciam promissoras histórias de sucesso —como a Hungria e a Turquia— estão decaindo ao autoritarismo.

E bem agora que regimes autoritários poderosos estão desafiando a democracia, os Estados Unidos retiraram seu apoio moral a ela. Trump demonstra simpatia pelos autocratas internacionais. Pior, argumenta a Freedom House, ele viola as regras da governança democrática.

Sob Trump, os Estados Unidos também questionam os componentes da cooperação internacional —tratados de segurança, mercados abertos, instituições multilaterais e esforços para enfrentar desafios internacionais como a mudança do clima. Agora, os norte-americanos preferem proclamar sua intenção de cuidar apenas de seus interesses, mesmo que diretamente à custa de aliados duradouros. Todos os relacionamentos devem ser transacionais, daqui por diante.

E as bases da economia mundial tampouco estão em boa forma. A economia pode estar se recuperando, mas não houve avanços significativos em termos de liberalização do comércio internacional desde a admissão da China pela Organização Mundial de Comércio (OMC), em 2011. A saída britânica da União Europeia também se provará um ato de desglobalização. A hostilidade contra os imigrantes está em alta descontrolada. A China, uma nova superpotência, controla severamente o livre fluxo de ideias.

Aqueles que acreditam na simbiose entre democracia, uma ordem econômica liberal e cooperação mundial certamente devem considerar todos esses fatores como mais que um pouco assustadores.

E por que isso aconteceu? A resposta consiste de mudanças no mundo e nas condições internas dos países, especialmente as democracias de alta renda. Entre as mudanças no mundo, as mais importantes são a perda de relevância do Ocidente como comunidade de segurança, depois do final da Guerra Fria, somada à queda de seu peso econômico, especialmente com relação à China.

Muitos norte-americanos acreditam que hoje seu país tenha tanto menos motivos quanto menos capacidade para continuar sendo generoso com antigos parceiros. Entre as mudanças internas, muita gente nos países de alta renda acredita que a ordem mundial liberal com a qual seus países estão compromissados não lhes propiciou muita coisa.

Em lugar disso, eles acreditam que ela tenha resultado em perda de oportunidades, de empregos e de respeito. O sistema vigente pode ter propiciado vastos ganhos às pessoas que frequentam Davos, mas beneficiou muito menos a todos os demais. Uma preocupação especial é que, depois da crise financeira, a maré não parece estar subindo e, se está, certamente não eleva todos os barcos igualmente.

Como resume Ikenberry, "a crise da ordem liberal é uma crise de legitimidade e de propósito social". O programa de Trump, que defino como "populismo plutocrático", é resultado reconhecível disso. O programa diz aos seus partidários que os interesses deles deixarão de ser sacrificados; que eles virão em primeiro lugar. O fato de que as políticas adotadas pelo governo dificilmente devam produzir os benefícios prometidos talvez seja irrelevante. Não há muita gente prestando atenção àqueles que argumentam nesse sentido.

Para os que acreditam que uma ordem internacional liberal enraizada na política democrática é eticamente correta e a melhor maneira de reconciliar a cooperação mundial e a legitimidade interna, isso é deprimente. Os homens e mulheres de Davos precisam considerar o que deve ser feito para salvar a ordem mundial do desastre.

Seria possível simplesmente esperar que o melhor aconteça. À medida que a economia melhora, o otimismo pode retornar. E isso por sua vez aliviaria ao menos parte do descontentamento. Mas essa é uma resposta pueril. As forças que conduzem a desfechos divergentes são poderosas, em nossas economias. Está longe de claro que a fragilidade financeira tenha sido eliminada, por exemplo.

Em lugar de complacência, precisamos confrontar duas questões fundamentais. A primeira é determinar o que é mais importante, se tivermos de fazer uma escolha dura: coesão política interna ou integração econômica internacional? Tudo bem ponderado, coesão é mais importante. A vida econômica requer estabilidade política. As políticas econômicas —fiscal, monetária e financeira— precisam fazer com que a maioria da população sinta que seus interesses estão sendo levados em conta. De outra forma estaremos colocando em risco a estabilidade democrática.

A segunda é onde concentrar os esforços de cooperação mundial. A resposta deve ser que administrar os bens comuns do planeta e a manutenção da estabilidade mundial precisam vir em primeiro lugar. Embora eu deseje ver maior liberalização do comércio internacional, isso precisa ser feito da maneira certa, e deixou de ser alta prioridade. Ainda menos premente é abrir ainda mais as economias ao livre movimento de pessoas, e até mesmo a manutenção do livre movimento de capitais pelo planeta. Política é uma questão primordialmente nacional. Os resultados das escolhas políticas precisam satisfazer o povo de cada país.

Trump não é a cura. Mas é evidentemente um sintoma. A ordem liberal internacional está desmoronando, em parte porque não satisfaz as pessoas de nossas sociedades. Os presentes ao fórum de Davos precisam reconhecer o fato. Se não gostam das respostas de Trump —e de fato não deveriam gostar delas— lhes cabe propor respostas melhores.

Tradução de PAULO MIGLIACCI

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