Jornalista, assina coluna com informações sobre diversas áreas, entre elas, política, moda e coluna social. Está na Folha desde abril de 1999. Escreve diariamente.
Cineasta que fez filme sobre morte do irmão agora busca assassino da mãe
A empregada doméstica Belmira Burlan é quem abre a porta do apartamento no prédio de três andares no Capão Redondo, periferia de SP. Ela já esperava o sobrinho, o cineasta Cristiano Burlan, 39. A visita foi combinada para que ele entregasse o DVD de um de seus filmes, o documentário "Mataram Meu Irmão" –que ganhou o principal prêmio no festival É Tudo Verdade, em 2013.
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"Faz dois anos que não volto aqui no Capão. É uma sensação estranha", diz Cristiano à repórter Marcela Paes. O retorno ao bairro –onde viveu parte da infância e quase toda a adolescência– traz lembranças ruins. Foi lá, a duas quadras do apartamento onde ele espera que a tia faça um café, que seu irmão Rafael foi assassinado.
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"As pessoas acham que esse documentário que eu fiz sobre meu irmão tem a história toda. Eu conto o ínfimo das coisas. O cinema não dá conta da realidade, mesmo sendo um documentário."
O bairro também foi o lugar onde ele afirma ter tomado dois tiros, um na coxa e outro na parte de trás da cabeça, aos 16 anos.
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"Parou a Rota e deram geral em todo mundo. Um moleque estava com um baseado e xingou, enfim... Só sei que eles sacaram as armas e atiraram. Levei tiro e me fingi de morto", conta ele. "Põe a mão aqui, ó", diz, pegando o dedo da repórter e colocando no pequeno relevo próximo à nuca.
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"Eu poderia ser uma pessoa muito mais soturna. Tinha motivo pra sair rasgando dinheiro e dando martelada nos outros [risos]. Mas também não vou ficar aqui fazendo terapia com você", diz o diretor, que hoje mora em Pinheiros, na zona oeste.
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Belmira traz o café e Cristiano volta ao papo com ela. "Então, tia, tenho uma coisa pra contar. Vou fazer um filme sobre minha mãe."
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"Jura, Cris? Mas é tão trágica a história dela também. Nossa, as duas histórias são muito trágicas. Que coisa acontece com essa família? Ela era tão bonita, tão bonita", diz Belmira sobre a irmã, que morreu assassinada pelo namorado em 2011.
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"Elegia de um Crime" começa a ser rodado em outubro e será um híbrido de documentário e ficção em que o diretor vai mostrar sua busca pelo assassino da mãe, que, segundo ele, continua solto.
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"Eu tenho uma ideia de onde ele está. Existe a possibilidade de eu não achá-lo ou achá-lo. Isso vai ser construído no filme. Acho que é meio um caminho sem volta porque vou mergulhar na história de verdade."
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A relação de Cristiano com a arte vem da infância. Diz que aos 14 costumava ir para a porta do Theatro Municipal na esperança de assistir a um espetáculo sem pagar. "Eu ficava lá esperando e sempre arrumava alguma entrada porque os casais brigam e sobra ingresso."
Quando ainda morava no Capão, aos 17, foi contratado como contrarregra de uma peça com o ator Osmar Prado.
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"Era 'O Fabuloso Obsceno' e ele [Osmar Prado] fazia 18 personagens. Achava impressionante. Pela primeira vez na minha vida eu tive contato com um grande ator. É uma pessoa de muito caráter, me ajudou muito. Até financeiramente, mesmo depois que acabou a peça."
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Logo depois, o cineasta conseguiu financiar uma ida para Barcelona, na Espanha, com o trabalho de garçom e bicos como ator. Foi para estudar teatro, mas largou o curso quando partiu para a cidade de Tânger "atrás de uma marroquina".
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A empreitada artística sofreu outra pausa quando conheceu um brasileiro que era soldado da Legião Estrangeira (unidade militar francesa).
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"Eu me alistei, mas só fiquei três meses. Eu já tinha lido 'Diário de um Ladrão', do Jean Genet [escritor francês que foi expulso da unidade militar]. Então tinha uma ideia do que era a Legião. Eles te transformam em uma máquina, mas eu saí antes disso", afirma ele.
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Foi ainda na Espanha que Cristiano desistiu de ser ator e começou a fazer filmes. "Dirigi um longa usando uma câmera super-8 com uns amigos lá. O filme também se chamava 'Super-8' [risos]."
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Desde então, já são 15 filmes, entre curtas, documentários e longas-metragens. Na semana passada, o diretor lançou "Hamlet", uma releitura do clássico de William Shakespeare.
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"Não escolho os temas. São os temas que me escolhem. Mas tenho atração pelos clássicos. É impossível ir pra frente sem passar por essas grandes obras. Também não sei como fazer comédias."
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Segundo ele, o longa, que foi codistribuído com incentivo da Spcine, custou R$ 10 mil, valor considerado baixo.
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"Só usei verba de edital em um curta. O resto dos filmes fiz com o dinheiro que ganho com prêmios e com a ajuda de amigos", explica.
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Um dos reconhecimentos veio com o Prêmio Governador do Estado de 2013, em que ele recebeu R$ 60 mil. Cristiano aproveitou a presença de Geraldo Alckmin na plateia para fazer um protesto contra a polícia do Estado de SP.
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"Eu estava com o [crítico de cinema e ator] Jean-Claude Bernadet e ele me disse pra eu ser preciso e para não envergonhá-lo [risos]. Aí eu subi no palco e disse que era irônico que o mesmo governo que premiou meu filme também era responsável pela morte do meu irmão. Ele morreu por uma quadrilha comandada por policiais militares", relembra.
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O motoboy Anderson Burlan, 30, primo do cineasta, toca a campainha da casa da mãe. Ele também ainda não assistiu ao documentário sobre a morte de Rafael, do qual participa.
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"Umas pessoas viram no Canal Brasil e vieram falar comigo. Quero ver logo", diz. E aproveita para convidar o primo para ir a um bar próximo ao apartamento de Belmira.
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O forró em altíssimo volume que sai da jukebox não impede a conversa dos dois. O diretor quer acertar a participação de Anderson em um filme que pretende fazer sobre o universo do rap. O longa, ainda embrionário, será filmado no Capão e também terá a participação da atriz Helena Ignez e do amigo Jean-Claude.
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"Eu já fiz umas músicas, me chamavam de Alemão da Cohab, mas, na hora de colocar minha profissão, põe motoboy, tá?", diz Anderson à repórter.
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"Lembra como era aqui há uns dez anos, primo? Era muito ruim, não dava pra ficar na rua depois de anoitecer. Agora melhorou um pouco", diz Cristiano.
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"Ainda não está bom, mas era pior. Antes, pra 'pegar mulher' nas festas, a gente não podia falar que era do Capão porque elas logo diziam: 'Aquele lugar onde morre todo mundo?'", diz um amigo de Anderson que também participa da conversa.
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Todos riem. E pedem mais uma cerveja.
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