nelson de sá
toda mídia
O jornalista Nelson de Sá cobre mídia e cultura na Folha. Escreve de segunda a sexta.
Castelo de cartas
Um amigo de Brasília enviou mensagem no final do Carnaval, sugerindo assistir "House of Cards", a melhor série sobre política que já havia visto.
Os 13 episódios surgiram on-line de uma só vez, há algumas semanas, pelo Netflix. Vi em três dias, ansioso, sem parar, a exemplo do amigo brasiliense.
É sobre um líder democrata no Congresso. Abre com a traição do presidente, que havia prometido torná-lo secretário de Estado e depois mudou de ideia.
Como numa peça de vingança elizabetana, com igual apelo, o político irá então praticar crimes monstruosos contra quem se colocar entre ele e o poder.
Os modelos são duas tragédias de Shakespeare, "Ricardo 3º", inclusive nos apartes irônicos do protagonista (Kevin Spacey) para o público, e "Macbeth".
Outras personagens centrais são sua mulher, que o apoia e incita, como Lady Macbeth, e uma repórter ambiciosa e aética, que o usa e é usada por ele.
O Netflix, que não permitiu que o instituto Nielsen verificasse sua audiência, divulgou que a série se tornou o programa de maior procura do serviço.
Quaisquer que sejam os números, a produção é um ponto de mudança para a mídia nos EUA e mundial: de canais a operadoras de TV paga, todos perdem.
O Netflix é um serviço de filmes e séries via internet, de preço baixo e consumo crescente, a ponto de ter levado a Amazon a lançar um concorrente.
Ano passado, o Netflix deu seu primeiro passo em conteúdo com "Lillyhammer", série de gângster mais ou menos inspirada na onda policial escandinava.
"House of Cards" é passo bem maior, com estrelas de Hollywood na frente e atrás das câmeras. O principal é David Fincher, diretor de "Clube da Luta".
Também Joel Schumacher, Carl Franklin etc. O Netflix não economiza munição, e sua vitória é anunciada por, entre outros, Michael Wolff, biógrafo de Murdoch: "O entretenimento de narrativa era domínio das redes e do cabo. O Netflix agora se une ao fluxo de roteiristas, produtores e atores que contam histórias."
E está lá, no talento narrativo das séries, o melhor da produção audiovisual hoje. O Netflix ataca redes e operadoras no que elas têm de mais atrativo.
Para Wolff, o Netflix "cruzou o Rubicão. É uma empresa de tecnologia que passou a produtora de conteúdo, com mais seis séries originais a caminho.
A própria "House of Cards" retrata a mudança alegoricamente, em seus jornalistas. A repórter ambiciosa logo troca o jornal por um site, mais influente.
Os modelos de jornalismo da série são sites reais, como Politico. O fictício Slugline deixa para trás o fictício "Washington Herald", inspirado no "Post".
Mas é ficção. Na realidade vertiginosa da internet, o Politico já nem tem a influência de um ano atrás: começa a ser ultrapassado pelo BuzzFeed.
O que é cada vez menos ficcional é a vitória do Netflix. Ontem, a Amazon demitiu seu executivo de vídeo, que havia contratado para derrubar o concorrente.
Mas a vítima maior são mesmo as operadoras de cabo. É delas, no trocadilho da "New Yorker" com o título da série, o castelo de cartas que está para ruir.
Livraria da Folha
- Coleção "Cinema Policial" reúne quatro filmes de grandes diretores
- Sociólogo discute transformações do século 21 em "A Era do Imprevisto"
- Livro de escritora russa compila contos de fada assustadores; leia trecho
- Box de DVD reúne dupla de clássicos de Andrei Tarkóvski
- Como atingir alta performance por meio da autorresponsabilidade