É escritora e colunista de gastronomia da Folha há 25 anos. É formada em Educação pela USP e dona do Buffet Ginger há 26 anos.
Escreve às quartas-feiras.
O gato comeu
Por onde é o caminho da missa? Por aqui, por aqui... Por aqui. Cadê o toicinho daqui? O gato comeu. Cadê o gato? Foi pro mato. Cadê o mato? O fogo queimou. Cadê o fogo? A água apagou. Cadê a água? O boi bebeu. Cadê o boi? Foi puxar trigo. Cadê o trigo? A galinha comeu. Cadê a galinha? Foi botar ovo. Cadê o ovo? O padre chupou. Cadê o padre? Foi rezar missa.
Nem te conto. A estrada comeu capinzal. A estrada comeu tudo. A casa pequena agarrada ao chão, as paredes de cal, a cama de lençóis rudes e limpos, o céu azul alto e o sol baixo, o lugar onde se guardava lenha e escorpiões.
A estrada comeu o rego e aqueles peixes de bigode chinês que levantavam um certo barro quando saiam de seus postos, incomodados.
A estrada comeu as goiabeiras lisas e as frutas de vez já marcadas com um prego preto, mas também as limas de bico, além da cerca de arame.
A estrada comeu o cheiro de tarde quente com o fogo apagando, o estrume dos bois. Comeu a igrejinha velha e o padre bravo, o ingazeiro mergulhado no ribeirão, corrente forte, água limpa cor de ouro talhado e as margens secas, o ribeirão sem peixes, mas com bichos de enchente.
A estrada comeu a pimenteira toda brilhante e picante, desaforada no meio do quintal pasmado.
Bebeu o poço e o cântaro de barro e a caneca de alumínio, o frescor maior da vida.
Terá comido também o lombo de porco da avó com gosto de coque, cabelos brancos e matiné. E o feijão e o arroz e o doce de leite e de cidra, e o queijo fresco. Comeu as mangas, se lambuzou de mangas de muitos nomes e cores, plantadas no musgo com troncos de musgo, com sombra melada.
Foi-se a galinha cega, a farmácia que vendia gelatina, a padaria dos picolés de corantes da farmácia. Foi-se a praça dos meninos penteados, das meninas de trança, do buxo seco querendo água, do coreto, da igrejinha lá no alto, tão alto que ninguém ia, era lá o cemitério. E quando chovia a cozinha da mulher de olhos verdes se enchia de ossos e ela passava a noite no rodo esbravejando contra as almas penadas.
E o matadouro com suas cercas e cheiro indefinido e bois de olhos grandes, pendurados.
Sumiram os fígados e as moelas das galinhas, e o sobre. A estrada levou tudo numa gula sem feitio. Mastigou o milho mirrado, as montanhas do horizonte, montanhas baixas, redondas, mulheres de verde desbotado, às vezes não, cortante e ácido.
Cadê a galinha? Foi botar ovo. Cadê o ovo? O padre chupou.
Sobrou a receita de pirão de ovos que acompanha a galinha de parida, receita das irmãs Rocha.
Pirão de ovos
Ingredientes
1 copo de água ou do caldo da galinha de parida
manteiga
2 ovos inteiros
2 col. de sopa de farinha de mandioca
cheiro-verde, sal e pimenta-do-reino a gosto
Preparo
Coloque a água ou o caldo para ferver, temperado com sal, pimenta-do-reino e um pouco de manteiga. Assim que levantar fervura, acrescente os ovos, cuidando para que não quebrem.
Tampe a panela só para cozinhar as claras. As gemas devem ficar moles.
Retire os ovos com uma escumadeira e passe-os para um prato raso. Reserve.
Ainda com a água fervente, coloque a farinha de mandioca (previamente desmanchada em água fria para não embolar) e mexa o pirão. Prove o sal e acrescente mais um pouco de manteiga e o cheiro-verde. Passe o pirão para um prato fundo e arrume os ovos por cima. Sirva com colher de sopa.
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