Fui encostando o ovo cozido duro no sal e comendo com a mão mesmo. Que diabo era aquilo? O gosto levemente adocicado, estranho, mas bom. A filha que tudo ouve e tudo enxerga pergunta, aflita. Mãe, você está mergulhando o ovo no açúcar? Disfarço, o açúcar era para o abacate e corajosamente vou até o fim.
Assim, sem querer, é que se descobrem novos sabores na cozinha, nos erros e na urgência de se salvar o que parece não ter mais jeito. Confesso que é a hora que mais me seduz, que a
adrenalina flui, que a criatividade tem que brilhar à força. Nada mais inspirador que um feijão bispado.
É um bom jeito de se inventar novas comidas, bolos destroçados se tornam berço para o sorvete de tamarindo, e quando o muito exótico não está à mão, a moda nos permite servir cajuzinho de amendoim, pé de moleque, qualquer verdura do quintal contanto que traga a marca de orgânico e sustentável, palavras mágicas, como "narrativa" e "desconstruído".
Felizes somos nós quando transformamos o chuchu em iguaria, cru, e a lata de atum com cebola roxa marinada no vinho em novidade.
Nunca os chefs foram tão atrevidos nem os comensais tão gulosos. Primeiro a estética, e se não temos jeito para transformar o feio em belo, usamos vasilhas, cerâmicas jamais vistas, folhas de banana, telhas que vão ao forno, cabaças negras, abóboras, cuias, ferro, barro e surpreendemos com a graça e o cheiro, abrindo o apetite pelos olhos. Donas de casa, chefs famosos, mergulhando nas raízes, fazendo cabrito novo com purê de mangarito. São novos tempos de coisas antigas.
Um cardápio que me agrada é o do mesmo ingrediente trabalhado com várias técnicas. Ao fogo, na água, em suco, desidratado, frito, empanado, recheado, em pó, moído, e a diferença
de gosto, de textura, de aparência.
Um dia alguém inventou o sorvete de batata com caviar, vamos atrás com o ceviche de frutas cítricas com milho, mas que tudo seja realmente gostoso, é o que se quer, é o desafio. Nada de exageros que tornem a comida difícil, que seja simples, bonita e boa. À busca da perfeição, do equilíbrio, guiados pela inspiração.
Um belo arroz branco em pirâmide, manchado de gema, como uma ilha, sobre um caldo grosso e negro de feijão pontilhado do branco da clara de um ovo, tudo polvilhado de florezinhas de borago, azuis e saborosas. Num pote pequeno, ao lado, a carne-seca ensopadinha fazendo par com o prato grande. É isso, e chama-se pê-efe empoderado.
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